Podemos aprender com o vírus

Por

Mirtes Cordeiro*

Em 17.08.2020

O ato de aprender é individual e contínuo, afirmam estudiosos e teóricos da educação em seus escritos. No entanto, a transformação do mundo requer que se faça a leitura da realidade para reescrevê-lo e transformá-lo através de uma pratica consciente.

Estamos num momento em que é necessário aprender com a chegada e permanência da covd-19 e tentar rever nossos processos de vida, nossa responsabilidade enquanto elementos integrantes da grande casa que é o planeta terra. Estamos num estágio bem inicial, aprendendo que lavar as mãos com água e sabão – mesmo sabendo que 35 milhões de pessoas no Brasil não têm acesso a água tratada – é uma prática de higiene que evita a contaminação com o vírus. Uma atitude tão simples, mas que nem todos praticam, pela falta da água e sabão, pela falta de conhecimento sobre ter uma vida saudável. Cem milhões de brasileiros também sem coleta de esgoto (Ministério das Cidades).

O tempo de pandemia mudou a direção na ordem vigente no mundo. A covid-19 nos obrigou a viver sob o domínio do desconhecido. Todos pensando sobre o vírus, escrevendo, falando, sobretudo vivenciando esta experiência tão assustadora e desagradável. De repente fomos tomados por novas lógicas ou arranjos de vida que não estavam dentro da nossa “normalidade”, não conhecíamos ou aceitávamos práticas que não as impostas, pelo modo de produção vigente. O que fazer para trabalhar pela sobrevivência sua e da família, sem se contaminar ou contaminar outras pessoas e como se afastar dos amigos e dos familiares, dos afazeres sociais e comunitários sem ser atacado pelo vírus letal?

Parodiando filme de ficção científica, é como se entrássemos num túnel do tempo, escuro, esperando uma saída iluminada quase inatingível para a maioria das pessoas. A verdade é que mais de 105 mil pessoas foram vencidas e viraram estrelas na travessia do túnel, arrebatadas da vida pelo desconhecimento da ciência sobre o vírus e pelo desleixo dos governantes com a manutenção do nosso Sistema Único de Saúde (SUS)

Sofrimento maior para a população pobre porque já é vítima da ausência das políticas públicas ou é assistida de forma precária.

Mudaram as relações de trabalho, algumas até sucumbiram. Mudaram as relações entre as famílias, nas entidades sociais e públicas. Mas o que mais afetou as famílias foram as mudanças nas relações de trabalho com a perda ou suspensão dos contratos e a adoção do trabalho em casa. De repente as novas formas de produzir e sobreviver se apresentaram com perdas nos salários e provocando situações de medo, desconforto, instabilidades emocionais e problemas mentais. No entanto, é preciso aprender com a experiência, fazer a leitura da realidade para encontrar ou criar formas de viver que apontem para reinvenção da vida. Começa a partir das nossas mentes, movendo a nossa consciência para a ação. Afinal de contas, somos todos herdeiros do HOMO SAPIENS.

Após tantas tentativas promovidas para efetivar o afastamento social e diminuir o contágio é preciso registrar que os resultados não foram suficientes. A ansiedade maior é pela retomada da economia, mesmo que os registros sanitários indiquem que ainda estamos num patamar que aponta mais de 1.000 mortos por dia. Acontece que para esse mundo capitalista, não é aceitável o mercado funcionando nas formas que não sejam as mais apropriadas para a obtenção de maior produtividade e lucro. Haja vista a forma como tem se comportado o debate sobre a abertura do comércio, das escolas, etc.

O capitalismo tremeu e com certeza perdeu lucro com a queda do patamar de consumo excessivo. “Segundo a revista Exame se dedicou a explicar, o nosso modelo econômico já vinha sendo questionado e agora, mais do que nunca, está sendo desafiado a se reinventar – o que impacta diretamente em como vamos criar, sustentar e distribuir renda em nossos negócios daqui a diante”. (Sofia Esteves, Cia de Talentos).

Em menos de dois meses, 600 mil pequenas e microempresas fecharam suas portas ao redor do Brasil, gerando 9 milhões de desempregados, de acordo com pesquisas do (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE).

A reinvenção desse modo de vida é de fato uma necessidade porque o mesmo não se tem manifestado inteligente com o avanço das agendas liberais a partir do processo industrial. O grande capital globalizado como funciona atualmente dentro dos países gerou desigualdade social inaceitável e aprofundou as diferenças entre as nações. Além disso, causou danos quase irreparáveis ao planeta terra com a exploração desordenada das riquezas naturais – florestas, minérios, fontes naturais de água – contribuindo decisivamente para a eliminação de alguns povos indígenas, ribeirinhos e outros moradores de áreas que exigem preservação.

Essa forma de gerar riqueza é responsável pela pobreza que se espalha por muitos países, inclusive os ricos. O Pnud calculou que cerca de 1,3 bilhão de pessoas vivem em pobreza no mundo, quase um quarto da população dos 104 países para os quais o Índice de Pobreza Multidimensional é calculado. (2018)

O resultado da exploração sem controle se expressa nos “acidentes ambientais” que se propagam pelo mundo. Só aqui no Brasil, podemos citar inúmeros como vazamento de óleo na bacia de Campos, no Rio de Janeiro; a falta de controle de barragens de minério em Minas Gerais, bem recentes; as constantes queimadas e a permanente exploração irregular de garimpos na Amazônia.

“Os seres humanos e a natureza fazem parte de um sistema interconectado. A natureza fornece comida, remédios, água, ar e muitos outros benefícios que permitiram às pessoas prosperar”, disse Doreen Robinson, chefe para a Vida Selvagem no Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). Contudo, como acontece com todos os sistemas, precisamos entender como este funciona para não exagerarmos e provocarmos consequências cada vez mais negativas.”

A covid-19 guarda relação íntima com as formas inadequadas de reprodução do capital no mundo.

Carecemos agora de um processo de reflexão sobre a nossa vida. O modelo escolhido e vivido até agora apresenta sinais de que não está sendo adequado ao nosso propósito na terra, a conquista da felicidade.

Acontece que a nossa participação enquanto seres humanos na evolução da vida na terra não foi totalmente benéfica e só começamos a entender sobre os males causados há poucos anos.

É preciso corrigir o rumo, proteger as riquezas naturais, preservar a terra – nossa casa – dividir a riqueza acumulada, gerar benefícios para todos, eliminar a situação de pobreza e suas mazelas às quais as  pessoas são submetidas, porque impossibilitam o crescimento individual  e a construção do ser cidadão. A desigualdade econômica e social como ora se apresenta no mundo, especialmente no Brasil, através de seus perversos indicadores, é antagônica ao aprofundamento da Democracia.

Se por um lado o homem é o único ser responsável pela degradação ambiental, por outro, é o único preparado, diante do poder do conhecimento, para criar uma consciência ecológica e mecanismos capazes de amenizar os prejuízos suportados, com vistas à manutenção da vida na terra. É o que apontam alguns estudos sobre a situação ambiental no planeta.

Estamos agora ansiosos em busca do “novo normal”, mas deveríamos aprender com a experiência a mudar o rumo. Não é tão difícil, se compreendermos que somos parte do que nos falece e do que nos encanta.

O que precisamos aprender é construir uma nova compreensão sobre a intervenção do homem no meio em que habita e que se prossiga na luta pela concretização do nosso paradigma de sustentabilidade, do nosso objetivo de proteção e preservação de todas as vidas.

O processo de aprendizagem é individual, coletivo e permanente. E como diz Paulo Freire, precisamos ser esperançosos, não por teimosia, mas por imperativo histórico.

*Mirtes Cordeiro é pedagoga.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.

Foto destaque: istoedinheiro.com.br