JOVENS AUTORES – O “ser médico” e o ser médico

Por

Matheus Henrique Soares N. da Silva*

Em 09.10.2020

Na minha jornada com a Medicina, minha companheira para horas boas e ruins, aprendi muitas línguas. Eu aprendi a língua do sistema locomotor; aprendi a interpretar os sussurros de um pulmão; e o código morse do coração e das artérias se tornou quase minha segunda natureza. Entretanto, nunca aprendi sobre a língua do paciente: a língua do medo da morte e das sequelas. Como estudante, entrei em contato com pacientes desde o primeiro período como uma vela a observar os desenrolares do encontro entre médico e paciente. Acompanhei bons encontros, encontros que claramente não viveriam uma reprise e o surgimento de longos relacionamentos.

Para mim, tudo não passava de tentativa e erro. Fui ensinado assim. Como toda relação humana, a relação entre médico e paciente dependia de uma sincronia inerente que, quando em falta, não poderia se desenvolver para muito além da base. Foquei nas línguas patológicas e em como silenciá-las, como a maior parte dos meus futuros companheiros de trabalho. Tratamos doenças e não doentes.

O estado de perturbação da saúde pode ter diferentes efeitos nas pessoas. Como estudante, acompanhei pacientes que passaram por uma regressão às primeiras etapas de fragilidade emocional infantil nas enfermarias. Pacientes esses que não receberam explicação sobre o que lhes era feito em alguns momentos ou que nunca se sentiam confortáveis para perguntar o que estava acontecendo. Estar fora da zona de conforto de seu próprio lar para tratar uma enfermidade é uma situação que, por si só, já causa desconforto em situações “menores” biologicamente, como doenças com complicações e tratamentos menos agressivos. Nos casos dos pacientes que passam a tomar a enfermaria como seus refúgios temporários, o caso é diferente. Eu aprendi durante a faculdade a calcular escalas de dor e quantificá-las de diferentes maneiras. Qualidade; local; irradiação e mais todo um decálogo de perguntas, mas nenhuma delas pôde verdadeiramente me dizer como o paciente se sentia. “Melhor, né, doutor? Já tou aqui tomando remédio faz tempo.” Qualquer um que falasse com um deles perceberia o brilho de ansiedade no olhar e a esperança de ouvir as palavras “alta” e “amanhã” direcionadas a eles.

Se negar de algo é a mais simples e arcaica defesa da psique humana e todo ser humano já a usou em algum momento.

Lidei também com pacientes que vivem em negação, principalmente os que recebem diagnósticos vinculados à área de oncologia, ou uma sentença de morte, como muitos chamam. Eu estava no ambulatório, recostado à parede como todos os estudantes que haviam entrado naquele estabelecimento antes de mim e como todos os outros que entrarão depois, prostrado como um móvel e absorvendo o máximo que eu podia entre as consultas relâmpago, quando entrei em contato pela primeira vez com um caso tanto da área da oncologia como com um paciente que se negava com o diagnóstico. O homem de meia-idade se negava perante o que estava escrito no papel e exposto na fala do médico repetidamente, como maneira talvez de se convencer que nada estaria acontecendo ou como uma súplica a qualquer figura divina em que ele acreditasse. Pessoas em negação perdem completa racionalização do meio em que estão inseridas, sendo impedidas de analisar criticamente a realidade e inferir o que está acontecendo, pois sabem da dor que vão sentir. Se negar de algo é a mais simples e arcaica defesa da psique humana e todo ser humano já a usou em algum momento. Eu nunca fui ensinado a como lidar com ela no outro, apenas em mim mesmo. Isso diz muito mais sobre o ego que desenvolvi durante o curso do que estou preparado para admitir.

O último dos tipos de pacientes com que lidei foi o que tem capacidade de racionalização para tudo. É um tipo de paciente que tende a viver na eterna sede pela causa e consequência do que está acontecendo a si mesmo ou aos outros. Foi o tipo de defesa que me disseram ser mais fácil de lidar, já que, dessa maneira, o paciente não se nega a tomar medicamentos ou buscar ajuda, mas creio que seja das defesas a mais danosa ao próprio humano. Há certa paz de espírito em viver no desconhecido, ou uma dádiva em algumas ignorâncias como diriam algumas pessoas. Há ações do mundo que não podem ser explicadas e que não podem ser justificadas, não importa o quanto tentemos. Foi isso que aprendi durante meus primeiros períodos. A falsa onipotência médica. É difícil saber que não há um porquê às vezes. Esses pacientes, os “abençoados” com a capacidade de racionalizar o que está acontecendo com eles, tendem a se atualizar sobre tudo ao seu redor. Alguns encaram os acontecimentos como aprendizado enquanto outros serão fadados a pensar sobre razões inexistentes para tudo. A única pessoa em que observei esse tipo de reação era, na verdade, a mãe de um paciente em tratamento intensivo. Ela brandia a todos que pudessem ouvir que queria saber a razão para a piora do filho e o que o havia levado ali, após ser atacado com uma faca. Não sei dizer o que se deu após isso, pois permaneci no hospital por menos de uma hora naquele dia mas, não acho que tenha sido uma boa conversa e não acho que tenha se descoberto a razão para tal agressão. Uma eterna dúvida sem respostas e um novo medo que não teria como se esvair.

É estranho ver as diferentes realidades de pessoas doentes atualmente, visto que, quando criança, eu, em meu mais puro poço de privilégio, me via na vantagem de não ter mais responsabilidades enquanto estivesse sendo tratado de algum resfriado ou outro quadro menor e autolimitado. Isso se dá pela inserção de responsabilidades que a enfermidade “concede”. A sociedade lhe isenta de compromissos como a ida ao trabalho ou a realização de atividades braçais. O que coloca a todos os enfermos na situação de ser novamente cuidado por mães e avós, o qual leva ao desenvolvimento de, como eu mesmo tinha quando pequeno, uma certa afinidade com a doença, ou uma hipocondria leve. Quer dizer, isso para os que tem o aporte para tal. Já vi pacientes solitários em minha vida. Pacientes que não possuíam ninguém além do estado. Também já vi, mesmo que apenas através da tela de cinema ou televisão em séries como Grey’s Anatomy e The Resident, pacientes que, por não possuírem sistemas de saúde complexos e completos com redes de apoio como o SUS, acabam sem ninguém; vistos, devido ao quadro que carregavam, como menos dignos de ocupar um espaço ou uma posição de prestígio social.

Exemplo claro de situações como essa, em que a doença se torna um novo determinante de caráter e personalidade acima de qualquer ação prévia ou futura que um indivíduo possa ter, é o caso dos pacientes que vivem com o vírus do HIV. A partir do momento que se é diagnosticada tal doença, uma nova mancha social parece ser posta na vida daquela pessoa. Houve melhora desses casos com o melhor desenvolvimento de antirretrovirais e outras drogas, o que cede mais “passabilidade” às pessoas soropositivas como indivíduos saudáveis.

Eu não notava, quando pequeno, como estar doente na verdade trazia um peso acima do que minha mente podia raciocinar. Estar doente significa que você deve melhorar, ou pelo menos tentar fazer isso. Parece estranho computar uma realidade em que o senso de viver não impere cada mínimo instinto do ser humano, até porque é apenas natural querer manter a própria vida. Todo ser vivo o faz. Mas a espécie humana quebra alguns padrões. Ao nos conceder com inteligência e capacidade de armazenar memórias e ressignificá-las, Deus puniu o homem com a eterna cruz da binaridade de sua existência. A capacidade de luto e mania com o passado torna o ser humano uma eterna sombra passível a se perder em sua própria mente, tentando reviver momentos ou memórias que há muito já se foram. Há quadros psiquiátricos que são explicados como exacerbação desses sentimentos, que podem levar o paciente a esquecer algo ou criar novas memórias para se prender a um fio de ilusão. O filme Coringa, ganhador do oscar de melhor ator em 2020, retrata essa situação na figura da mãe de Arthur Fleck, que vive no eterno luto de algo que nunca viveu.

Assim como no filme, ainda somos acostumados à ideia de isolar essas pessoas. Talvez por medo, vergonha ou mesmo pena de tudo que as rodeiam. Pode não haver mais asilos ou locais em que o isolamento físico é instaurado sem deixar que elas entrem em contato umas com as outras, entretanto, já vi famílias que ocultam parentes com diagnósticos dentro das próprias casas, sem nunca deixar que entrem em contato com os outros. A série Legion, do canal FX, nos apresenta essa realidade no começo de sua primeira temporada, de maneira hollywoodiana e glamourizada, mas ainda assustadora, tal como o filme Um Estranho no Ninho. Essas pessoas, assim como as HIV positivo, perdem sua identidade para a doença que as define em níveis ainda mais irredutíveis e violentos, visto que, sem nossa suposta sanidade, a qual nem mesmo Bacamarte no conto O Alienista de Machado de Assis conseguiu definir, o que somos?

Durante meu primeiro período, aprendi sobre a visita comunitária que enfermeiras e médicos da atenção básica fazem, como maneira de se aproximar dos usuários de sua USF e criar um vínculo de confiança e companheirismo.

A terapia comunitária, metodologia em que a própria comunidade trata as vítimas de transtornos psíquicos e emocionais, veio para quebrar o misticismo ao redor do tratamento dessas pessoas. A vivência compartilhada e as dinâmicas de grupo, aquelas que aprendemos a esquecer durante a faculdade para nos tornarmos os pensadores da ciência que a sociedade espera que sejamos, se mostram muito mais benéficas para o tratamento dessas pessoas do que a retirada delas de suas casas para serem tratadas em hospitais e clínicas especializadas. Durante meu primeiro período, aprendi sobre a visita comunitária que enfermeiras e médicos da atenção básica fazem, como maneira de se aproximar dos usuários de sua USF e criar um vínculo de confiança e companheirismo. Parando para analisar esse tipo de atendimento, 2 anos no futuro e 4 períodos mais próximo da formatura, percebo o impacto que essa ação causa. O médico se desloca para atender o paciente ao invés de o contrário, o que desmistifica o peso social que a figura de jaleco branco possui. Médicos, doutores ou mesmo físicos, como eram conhecidos na antiguidade arthuriana, sempre foram uma constante onde quer que passavam, imóveis como uma montanha a qual todos deveriam escalar para encontrar uma cura, quase postos em posições de divindades dignas do panteão grego. Eu nunca tinha percebido isso até entrar em contato com o sistema de visitas, e com a maneira como isso altera em muito todo o processo ao redor do curar e do buscar ajuda.

Eu não era alguém que desejava ser médico na infância, ou mesmo começo da adolescência. Eu queria viver de artes e filosofia, talvez filmes e mordomia, como um bom adolescente com astros demais em aquário e uma dose extra de privilégios que faltam à maior parte da população brasileira. Como uma pessoa de classe média, não tive a pressão de decidir o que deveria ou não fazer e que escolha tomaria para definir o resto da minha vida até bem tarde, perto dos 16 anos, quando resolvi o que iria cursar. Eu fantasiei e me decepcionei com a medicina durante os anos que passaram no curso. Amei; odiei; desconheci e redescobri em proporções semelhantes. Eu nunca fui um grande sonhador quando jovem, e creio que essa característica ainda não me encontrou na vida adulta. Projetei planos e metas que sei que nunca irei cumprir, mas estou bem com a existência deles em segundo plano como um motivador. A fé que me levou em frente, nada mais foi que a fé em mim mesmo. Eu fui uma criança-adolescente e um adolescente-adulto, e provavelmente estou a caminho de uma adultez-idosa em mais alguns anos.

Aprendi muito sobre o mundo através da cultura da internet. Desaprendi muito sobre ele também através da mesma. Peguei brigas com meus pais, criei grupos para discussão de movimentos sociais e depois me entreguei diretamente à vida universitária, em busca de um possível local de fala. Porém, aprendi que, durante a graduação, o estudante deve dominar a fina arte de se tornar invisível perante seus superiores. Eu não tive problemas com figuras de autoridade durante minha vida, talvez porque sempre fui ensinado a dialogar mesmo nas situações não tão promissoras, mas a medicina me tirou isso. A brutalidade ensina, como dizem alguns médicos. Outros dizem que basta tomar seu remedinho e não reclamar. Penso que eles já foram como eu em algum momento. Assustados demais para fazer algo, mas culpados de tudo que acontece. Talvez haja um momento de virada de personagem em que eu também me tornarei o imprint da teoria do oprimido e do opressor de Paulo Freire. Espero apenas que isso não aconteça, pois realmente quero ser diferente dos que tentaram me ensinar.

Também aprendi, com os médicos, que a especialização é onde nos encontramos na carreira. Percebi, vendo esses mesmos especialistas, que eles nada mais são do que vários Ícaros que decidiram não voar até o sol. Percebi que quanto mais se limitam, menos do corpo enxergam e mais se aproximam das aulas de anatomia em que não há paciente reagente. Percebi que o foco na doença é um caminho natural e sem volta, quase determinista na vida da classe que escolhi fazer parte, com raras exceções.

Há também o peso da desumanização que me acostumei a atribuir à figura do médico e do professor universitário da área. Eles respiram, comem, riem, mas claramente lhes falta algo que faça com que eu consiga estabelecer um grande vínculo.

Eu vim de uma escola de bairro, com turmas pequenas e professores que conheciam cada mínima peculiaridade nossa. Criei vínculos e uma família com todos ali. Eu sabia que a faculdade iria ser mais impessoal, mas ainda passei por um longo período de adaptação com os professores que apenas expunham o que era proposto no projeto do curso e saíam. Sem palavras de olá ou adeus, como nos encontros falhos que usei como analogia no começo de todo esse texto. Me conectei muito mais com monitores, pois estão mais próximos da minha realidade e da minha vivência. Também estão mais próximos de passar pela grande metamorfose que os tornam ariscos para com a vida, mas não gosto de pensar nisso. Há também o peso da desumanização que me acostumei a atribuir à figura do médico e do professor universitário da área. Eles respiram, comem, riem, mas claramente lhes falta algo que faça com que eu consiga estabelecer um grande vínculo. Também enxerguei poucos deles como modelos, pelo menos dos que entrei em contato até o momento. Salve por dois ou três dos professores médicos, a grande maioria me faz questionar se gostaria de me tornar aquilo ao custo de muito de meus valores. Parece-me não valer a pena. Ser um bom médico, mas me tornar uma pessoa com ideais elitistas e egocêntricos ou continuar sendo a pessoa que sou, mas sem ter um mestre em quem poderei me espelhar.

Ao fim, concluo que aluno e paciente estão mais próximos um do outro do que se imagina. Ambos estão a mercê do médico, às vezes atuando como ferramenta ou objeto de estudo primariamente e apenas em segundo plano como uma companhia humana de momentum. Estudantes e pacientes parecem dividir uma cruz em comum no universo de diferenças que não compartilham. Acho difícil me comunicar com pacientes ainda hoje, por medo de estar falando fora de minha vez ou de estar atrapalhando mais do que ajudando. Parando para pensar agora, meu medo não é vinculado ao doente, mas ao preceptor que me acompanha e o que ele achava de mim. O doente vira uma nota ou uma prova objetiva quando estou na presença do médico, pois essa foi a única maneira que encontrei de lidar com a pressão imposta.

Acho difícil estabelecer o vínculo com o paciente. Me pôr no lugar dele, às vezes, é até factível, mas não torna mais fácil ou menos desconfortante a comunicação de alguns pontos. Falar sobre más notícias; lidar com péssimos diagnósticos; explicar a enfermidade. Nada me preparou para isso além da própria vida e experiências que venho coletando ao longo desse tempo como estudante, num constante modelo empirista de aprendizado.

Já vivi anamneses-conversas e anamneses-questões. Já enxerguei pessoas com doenças e doenças em pessoas. Já vi médicos-professores e professores-médicos, assim como bons médicos que considero má pessoas e vice-versa. Ainda trilho o caminho até tomar uma verdadeira decisão sobre tudo, aprendendo, mudando e rezando para não encontrar uma pedra no meio do caminho que nada mais seria do que eu mesmo me tornando aquilo que evito, mas tento aproveitar ao máximo enquanto sigo em busca de mais aprendizados.

*Matheus Henrique Soares N. da Silva tem 20 anos e é estudante do sexto período do curso de Medicina da Universidade de Pernambuco – UPE.

NOTA DO EDITOR

Com esta crônica assinada por Matheus Henrique Soares N. da Silva, de apenas 20 anos de idade, o blog Falou e Disse dá sequência à coluna JOVENS AUTORES. O espaço é destinado a estimular e encorajar adolescentes e jovens a compartilharem as suas ideias e os seus pontos de vista de maneira mais ampla, buscando publicar crônicas e artigos sobre os mais variados temas.

O artigo O “ser médico” e o ser médico foi editado respeitando-se a íntegra do texto recebido.

Textos para publicação no espaço JOVENS AUTORES devem ser encaminhados para o email ambrosiosantos@gmail.com