JOVENS AUTORES – Solitário qual nuvem vaguei

Por

Matheus Henrique Soares N. da Silva*

Em 25.09.2020

“Não existe passado, presente ou futuro. Tudo está acontecendo agora.” Marcos não se lembrava em que lugar havia ouvido essas palavras. Provavelmente, no último livro que havia lido ou em alguma cena de seu programa de TV favorito. Era difícil manter a conta de todas as coisas que haviam entrado e saído de sua rotina nos últimos meses, como artefatos para limpar o gosto amargo de desconhecimento que havia se instaurado com o passar dos dias.

Era Junho. O céu estava claro. Marcos se encontrava de pé ao lado do sofá enquanto mais notícias passavam na televisão, imperando as ações de uma parte da população, ao passo que, cada vez maiores porções da mesma desistiam da guerra silenciosa contra a doença. Sempre existiu um limite invisível do quanto se conseguiria lidar com todas as sensações que se cultivavam nas sombras solitárias que haviam se instalado ao redor do mundo. Marcos fugiu dessas sombras, ou ao menos tentou se esconder delas o máximo que pôde nos primeiros 90 dias de isolamento.

Havia se tornado difícil com o tempo diferenciar os dias da semana, ou mesmo os meses que estavam passando um a um em diferentes velocidades. É sabido que a percepção do tempo depende das memórias e que o conceito do presente nada mais é do que o passado mais recente possível, visto que o cérebro bidimensional humano precisa de tempo para assimilar e projetar todos os mínimos estímulos que o ambiente está mandando. Logo, humanos vivem naturalmente milissegundos no passado, sem nunca perceber isso. Pelo menos, é o que alguns físicos acreditam. É também no que Marcos acredita.

É através desse discurso enfadonho e levemente filosófico que Marcos aprendeu a justificar as ações das pessoas. “Vivemos eternamente no passado, por isso não pensamos no futuro e acabamos focando demais nas pessoas que fomos para enxergar as pessoas que estamos nos tornando.” Foi o que Marcos disse a uma de suas melhores amigas ao discutirem o último livro que leram em conjunto. Foi também o que o levou a se questionar se em algum momento todo o orgulho que carregou por se conhecer, se aturar e se respeitar foi derradeiramente verdadeiro.

Marcos nunca teve problemas com a solidão enquanto crescia. Pelo menos não que se lembre. Talvez fosse por conta das conjunções de astros do dia de seu nascimento que haviam lhe abençoado com muitas casas astrológicas de peso em signos de ar, ou talvez, tenha sido um grande processo multifatorial que compilou sua auto-descoberta com os aprendizados dos desenhos animados em excesso que via na infância para passar o tempo enquanto os pais trabalhavam os três turnos. Marcos não saberia responder, mas os dias em companhia de sua família na quarentena se mostravam solitários de maneira diferente do costumeiro.

“Um salve de palmas a quem quer que tenha dito que a vida só pode ser vivida quando olhamos para frente.” Disse Marcos conversando com a TV ainda ligada. A curva vermelha atingindo números  nunca antes imaginados de mortos e contaminados. Um verdadeiro apocalipse digno de filmes e séries de zumbis hollywoodianos, se querem saber.

“Eu sei que positividade nunca foi minha coisa, mas como que se olha para o futuro e se pensa que vai acontecer algo bom dessa maneira?” disse ele, cansaço enchendo suas expressões como o tempo ainda não havia feito com seu corpo de vinte primaveras de vida.

“Vai dar tudo certo. Só precisamos esperar.” Respondeu sua mãe, trocando de canal para assistir mais um episódio das diversas séries policiais genéricas da AXN.

“Sei.” As conversas entre Marcos e seus parentes haviam se reduzido a isso nos últimos tempos com o convívio diário. Um trocar de cinco a dez palavras por dia e quem sabe uma briga aqui e ali para manter o motor sempre funcionando, mas nada mais do que isso.

Marcos foi até seu quarto em passos lentos, dobrando, com destreza e certo pesar, em cada corredor da casa onde viveu por oito anos antes de se mudar para estudar longe. Poderia andar ali com os olhos fechados e, talvez, uma mão atrás das costas, mas tudo parecia estranho. Errado até. O cheiro ainda era o do desinfetante rosa que sua mãe gostava; as cadeiras não haviam mudado de posição; a terceira cerâmica de seu quarto, da esquerda para direita, da primeira fileira, ainda tinha uma rachadura de quando ele derrubou um martelo no chão na juventude, mas tudo parecia estranho.

Se passado, presente e futuro acontecem ao mesmo tempo numa grande esfera temporal que os humanos teimam em dizer ser uma reta, por que Marcos sentia sua vida congelada em um único momento? Se a vacina, o primeiro caso e o pico estavam acontecendo ali, por que os humanos têm de sofrer enxergando apenas o pior? Que nada mais é do que as consequências de um conjunto de péssimas escolhas.

Se Marcos sempre se conheceu a ponto de saber todos os limites que não podia passar durante sua vida para se auto-preservar, por que quando olhava em seu espelho nada mais via do que um rosto que não combinava em nada com a narrativa que sempre seguiu em sua cabeça? Ser protagonista do grande conto que era sua própria vida estava sendo mais difícil do que pensava, então, para não focar nisso, o jovem adulto criou projetos e metas. Não daquelas metas vinculadas à faculdade ou coisa parecida, pois sabia que isso levaria a cobranças que demandariam muito tempo para se preparar psicologicamente, mas metas que julgou serem divertidas. Ver um filme por dia; ouvir toda a discografia de seus artistas favoritos; estudar artes; maratonar diretores famosos para finalmente poder criticar filmes na rede social ao lado sem culpa ou julgamento alheio, afinal de contas, agora finalmente possuiria um paladar artístico construído para tal.

Músicas foram trocadas pelo silêncio mentiroso de uma mente ociosa e livros de arte foram trocados pelo branco opaco do gesso do teto de seu quarto.

As metas haviam começado bem. Marcos conseguiu ver 58 filmes nos primeiros 60 dias e, redescobriu músicas que nunca passou por sua cabeça jovem esquecer num futuro tão próximo como os 20 anos. Com o tempo, filmes foram trocados por longas estadias na cama pensando sobre nada e por idas consecutivas ao mesmo site em busca de alguma inspiração. Músicas foram trocadas pelo silêncio mentiroso de uma mente ociosa e livros de arte foram trocados pelo branco opaco do gesso do teto de seu quarto. Se um grande botão de avançar existisse, esse era o momento que o nosso protagonista provavelmente o usaria, na mais fútil versão do filme Click que existe.

Marcos dormiu naquele dia como em todos os outros antes daquele, com o ar-condicionado na menor temperatura, um lençol fino e dois travesseiros desgastados pelo tempo com uma clara marca no formato de sua cabeça. O dia seguinte nada mais seria do que uma réplica do dia anterior. Nunca melhor nem pior, apenas igual em toda sua monotonia. Não havia animação para o que o próximo dia traria. Não havia nem mesmo ansiedade ou receio.

Mais dias passaram. Mais gráficos surgiram na TV. Mais brigas rugiram pelos corredores. O medo deu lugar à tristeza, que, por sua vez, abandonou o barco junto com todos os outros divertidamentes após algum tempo. Apatia coloriu os dias em cinza como uma praga digna dos níveis da peste negra ou do vírus que havia começado tudo isso. O frio do ar-condicionado parecia se manter mesmo quando o aparelho estava desligado.

Se Marcos pudesse, solitário qual nuvem vagar, como diria William Wordsworth, e quem sabe, avistar a multidão que já enchia as ruas mais e mais e dançava ao ritmo das ondas do mar povoando praias e campos, provavelmente se dissolveria em pesar por estar manchando o límpido céu com sua sombra. Marcos sabia que o erro não era seu em ainda se manter isolado. Ele também sabia que deveria achar errado ver todas aquelas pessoas se arriscando e pondo em risco a vida daqueles com quem compartilhavam um teto. Afinal de contas, o próprio Marcos fazia aquilo por sua família. Seria hipocrisia ou mesmo injustiça dizer que o pensamento de se juntar aos foliões e corruptos não havia lhe contaminado a mente depois de um tempo.

Sair. Ver pessoas. Se arriscar pela mera energia da aventura não vivida e dos amores não explorados. Possibilidades e mais possibilidades que desciam pela garganta junto com o café quente de todas as manhãs.

Já era Agosto. O céu ainda estava claro. E o protagonista de toda essa história estava começando a querer ser nada mais que uma figura coadjuvante. Seus pensamentos se encontravam, tal qual a única nuvem que povoava o céu claro daquela manhã, em estado de vaga suspensão. A visão de narcisos e pessoas a bailar no verde dos campos e no meio-fio das ruas lhe beijando os pensamentos como uma promessa pela exultante liberdade.

*Matheus Henrique Soares N. da Silva tem 20 anos, é estudante do sexto período do curso de medicina da Universidade de Pernambuco – UPE.

Foto destaque: Tela de Edward Hopper/Office in Small City.

NOTA DO EDITOR

Com esta crônica assinada por Matheus Henrique Soares N. da Silva, de apenas 20 anos de idade, o blog Falou e Disse dá sequência à coluna JOVENS AUTORES. O espaço é destinado a estimular e encorajar adolescentes e jovens a compartilharem as suas ideias e os seus pontos de vista de maneira mais ampla, buscando publicar crônicas e artigos sobre os mais variados temas.

A crônica Solitário qual nuvem vaguei foi editada respeitando-se a íntegra do texto recebido.

Textos para publicação no espaço JOVENS AUTORES devem ser encaminhados para o email ambrosiosantos@gmail.com