JOVENS AUTORES – Carta à bela margarida de meu jardim frio

Por

Matheus Henrique Soares N. da Silva*

Em 06.11.2020

Chovia em vermelho quando conheci você. As janelas do hospital batiam violentamente e o chão de cerâmica parecia brilhar com a luz fantasmagórica das lâmpadas que mal funcionavam. Eu estava nervosa, afinal de contas, já estava há 36 horas lhe esperando. Eu senti dor. Senti raiva. Senti rancor. Senti tristeza. Senti até felicidade em alguns momentos. Aquela não era a primeira vez que eu passava por tudo aquilo. Eu esperava que fosse a última, na verdade. Você foi a terceira a chegar à linha de chegada que era minha vida, com mãos gordas e olhos preguiçosos que me lembravam do mais recente abandono em minha vida.

Você surgiu de um momento de fraqueza. Quer dizer, pelo menos é isso que todos me dizem. Seu pai queria algo especial como presente de aniversário. Nós festejamos como os jovens que não éramos mais. João e Vítor estavam com minha mãe, afinal de contas, eu sabia o quanto seu pai não se dava bem com eles. Eles lembravam demais outra pessoa que não eu. Alguém que ele queria apagar de minha existência ao me infestar com a presença intensa dele. Eu achava romântico na época. A possessividade doentia e a ideia dele de me marcar como sua. Acho que o problema também estava em mim. Ou talvez esteja em todo o mundo e seu ideal ridículo de amor.

Eu não nasci para ser mãe. Forçaram-me a querer ser isso, mas nunca foi algo que eu sonhei. Eu creio que existam pessoas que precisam da companhia de um filho durante a vida, outras que precisam da não existência de uma criança em sua vida para se sentirem completas. Há ainda um terceiro grupo que não se importa em ter ou não uma prole. Fico triste em admitir que sou do segundo grupo. Não era pra ser algo vergonhoso ou nada do tipo, eu sei, mas cresci em uma sociedade que nunca me deixou enxergar dessa forma. Você tem uma vida pela frente para aprender as coisas certas das quais fui privada.

Espero que ache alguém que lhe ame e lhe proteja, mas sem nunca lhe limitar.

Eu espero que você encontre amor. Quebre o coração algumas vezes para criar caráter, mas que se reerga como a mulher forte e independente que eu nunca pude ser. Espero que ache alguém que lhe ame e lhe proteja, mas sem nunca lhe limitar. Alguém que não corra como a água de um rio ou como o seu pai quando dei a grande notícia. Espero que você fique bem e entenda o porquê da minha escolha. Eu me arrependo de muitas coisas, entre elas, infelizmente, dos filhos que escolhi ter. Espero que você não siga pelo mesmo caminho, de se obrigar e se matar aos poucos para entrar num padrão que nunca tentou lhe abarcar ou se adaptar para você.

Eu acredito que a sociedade não vai lhe esmagar como tentou esmagar a mim. Sei que você seguirá de cabeça e ombros erguidos, caminhando para um amanhecer diferente de um mundo melhor do que o que eu vivi. Aparto você de mim para que nós duas possamos ser livres. Livre da maternidade em meu caso, e livre de um falho amor que você claramente não merece.

Eu lhe dei esse nome em homenagem ao campo de flores belas que você se tornará um dia.

Espero ainda que quando cresça você tenha a sorte que tive em não sentir cólicas menstruais. Ou que, assim como eu, você chegue a próximo dos 40 sem precisar usar óculos. Acho que estou falando coisas aleatórias sobre mim para que eu me sinta menos culpada por tudo. Ou talvez para que eu sinta que estou presente e lhe trazendo algum bem, mesmo que eu saiba que essa não é a questão.

Eu lhe nomeei Margarida em homenagem à minha mãe, mas não sei se trocaram seu nome ao lhe entregar para sua nova família. Eu lhe dei esse nome em homenagem ao campo de flores belas que você se tornará um dia. Vá em frente sem olhar para trás. As marcas sombrias e frias de tua leveza em meus braços trêmulos e inseguros ficarão em mim cravadas pelo resto da vida, mas deixe que eu carregue essa dor sozinha.

Um grande beijo, se é que você ficaria feliz em o receber.

De sua Mãe.

*Matheus Henrique Soares N. da Silva tem 20 anos e é estudante do sexto período do curso de Medicina da Universidade de Pernambuco – UPE.

NOTA DO EDITOR

Com esta crônica assinada por Matheus Henrique Soares N. da Silva, de apenas 20 anos de idade, o blog Falou e Disse dá sequência à coluna JOVENS AUTORES. O espaço é destinado a estimular e encorajar adolescentes e jovens a compartilharem as suas ideias e os seus pontos de vista de maneira mais ampla, buscando publicar crônicas e artigos sobre os mais variados temas.

A crônica  Carta à bela margarida de meu jardim frio foi editada respeitando-se a íntegra do texto recebido.

Textos para publicação no espaço JOVENS AUTORES devem ser encaminhados para o email ambrosiosantos@gmail.com