Impacto negativo do consumismo sobre a constituição da criança

Por

Elisa Cruz*

Em 15.10.2021

O desenvolvimento do sistema capitalista e das revoluções tecnológicas no século 20 elevaram o consumo a um traço característico das relações sociais contemporâneas. O consumo torna-se uma cultura ou forma de estar no mundo, o que significa dizer que a sensação de existência da pessoa e a sua felicidade dependem da aquisição de bens e serviços.

Num primeiro momento, foram os adultos os objetos dessa cultura de consumo, mas, com a redução progressiva da quantidade de filhos nas famílias e da concentração de cuidado das famílias sobre esses filhos, as crianças se tornaram destinatárias das políticas de incentivo ao consumo.

A publicidade e as técnicas de marketing passaram a ser orientadas ao público infantojuvenil, buscando simultaneamente a ampliação de consumidores ou o aumento do consumo pelas famílias influenciadas pelos desejos manifestados pelas crianças.

Dados do Instituto Alana informam que as crianças brasileiras influenciam 80% das decisões de compras de uma família, seja sobre carros, roupas, imóveis, saúde, os produtos da casa, móveis etc. Ou seja, a participação da criança na circulação de bens e serviços é muito alta e a capacidade de atingir e influenciar esse público pode ser determinante para o sucesso do fornecedor do bem ou serviço.

Contudo, crianças e adolescentes são reconhecidos como pessoas em processo de formação e teorias sobre desenvolvimento infantil já demonstraram que a cultura consumista pode ter um impacto negativo sobre a constituição da criança ou do adolescente enquanto pessoa. Os estímulos corporais produzidos no contexto de consumo podem potencializar sentimentos de frustração, ansiedade e outros transtornos de saúde que, no longo prazo, serão prejudicais a esse público-alvo.

A vulnerabilidade inerente à condição da criança e do adolescente é objeto de preocupação pelo Direito, como, por exemplo, no Código de Defesa do Consumidor (CDC) (Lei n° 8.078/1990). Mesmo sem ter referência explícita sobre crianças, o CDC é adaptável de acordo com a intensidade da vulnerabilidade do consumidor e, porque crianças são especialmente mais vulneráveis, a proteção do CDC é ainda mais intensa. Assim, no artigo 36 do CDC, por exemplo, irá se exigir maior rigor na compreensão de que se trata de publicidade quando ela for direcionada direta ou indiretamente ao público infantil.

Também o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069/1990) tem um relevante papel na proteção da criança consumidora, ao exigir que seja respeitada a sua condição de pessoa em desenvolvimento. Em complementação ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Conselho Nacional dos Direito da Criança e do Adolescente (Conanda) editou a Resolução 163/2014 que proíbe a “prática do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança, com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço e utilizando-se, dentre outros” de linguagem infantil, efeitos especiais e excesso de cores; trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por vozes de criança; representação de criança; pessoas ou celebridades com apelo ao público infantil; personagens ou apresentadores infantis; desenho animado ou de animação; bonecos ou similares; promoção com distribuição de prêmios ou de brindes colecionáveis ou com apelos ao público infantil; e promoção com competições ou jogos com apelo ao público infantil.

Leis amplas e gerais, como CDC e ECA, apesar de importante, não conseguem sozinhas dar conta da prevenção ou do combate às práticas irregulares existentes no mercado.

O combate a esse fenômeno exige a participação da sociedade civil, como o fazem o Instituto Alana com o projeto “Criança e consumo” ou a Fundabrinq, dentre outros, mas de outras instituições que exercerão outros mecanismos de controle, além, claro, da participação de todos nós na denúncia de irregularidades.

Um dos exemplos de sistema de fiscalização é o papel do Conselho Nacional de Autoregulamentação Publicitária (Conar), empresa privada, cujo código (artigo 37) exige que a publicidade destinada a crianças e adolescentes deverão contribuir para o desenvolvimento positivo das relações entre pais e filhos, alunos e professores, e demais relacionamentos que envolvam o público-alvo; respeitar a dignidade, ingenuidade, credulidade, inexperiência e o sentimento de lealdade do público-alvo; dar atenção especial às características psicológicas do público-alvo, presumida sua menor capacidade de discernimento; obedecer a cuidados tais que evitem eventuais distorções psicológicas nos modelos publicitários e no público-alvo; abster-se de estimular comportamentos socialmente condenáveis.

A violação às regras publicitárias fica sujeita a punição estabelecida no Código do Conar. A título de exemplo, em 2021, entre fevereiro e julho, o Conar decidiu pela punição com multa, advertência e/ou modificação de publicidades em 06 casos iniciados por reclamação de consumidores. O último julgamento referia-se a achocolatado cuja embalagem continha código para acesso a conteúdos exclusivos de um influenciador famoso no meio infantil. Foi aplicada advertência à empresa e ao influenciador e solicitação de mudança na publicidade porque se entendeu que o código na embalagem constituiria um “apelo imperativo de consumo” em desfavor de crianças.

No âmbito público, uma das instituições responsáveis pelo controle de abusividade de publicidade infantil é a Secretaria Nacional do Consumidor, órgão vinculado ao Ministério da Justiça, e que pode fiscalizar e punir empresas por violação das regras de publicidade do CDC.

Em síntese, é preciso entender o potencial danoso do consumismo infantil e, ao reconhecermos a baixa eficácia apenas dos comportamentos individuais de controle do consumo por parte dos pais, participarmos de modos de controle mais amplos que podem trazer benefícios coletivos em favor da infância.

*Elisa Cruz é professora doutora de Direito Civil da FGV-RJ, defensora pública da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e autora do livro Guarda Parental: Releitura A Partir do Cuidado (2021).

Artigo publicado originalmente no portal da revista Consultor Jurídico.

Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.

Foto destaque: Agência Brasil/Arquivo