Livros didáticos de língua portuguesa menosprezam conhecimentos africanos
Isabela Nahas*
Em 13.03.2025
Especialista analisou as coleções do ensino fundamental mais adotadas pelas escolas e encontrou erros sobre o contato entre línguas africanas e o português do Brasil
Uma pesquisa da USP aponta que os livros didáticos dos anos finais do ensino fundamental possuem erros e reproduzem estereótipos ao tratar do contato das línguas africanas com o português ao longo da história. Para a pesquisadora Tâmara Rocha, a pouca importância dada ao ensino dos contatos linguísticos no Brasil pode ser considerada como um epistemicídio, pois a falta de informações que apaga saberes de populações negras ocorre desde o ensino básico até a formação acadêmica de professores.

Tâmara é autora da dissertação de mestrado intitulada Contato, variação linguística e línguas africanas em materiais didáticos de português: uma análise crítica. Durante a pesquisa, ela analisou os três materiais didáticos de português mais selecionados do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) de 2020, do 6º ao 9º ano do ensino fundamental.
Os livros do PNLD apresentaram conteúdos superficiais e equívocos sobre a influência do contato com línguas africanas para o português brasileiro. Já o material de ensino Narrativas Quilombolas: dialogar, conhecer, comunicar, criado em 2017, trata sobre as populações negras com fontes científicas e atualizadas.
Tâmara Rocha defendeu o mestrado em 2024 no departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Seu orientador foi Alexander Cobbinah, o primeiro professor a ocupar uma cadeira destinada aos estudos de linguística africana no Brasil.
O contato linguístico
De acordo com a pesquisadora, contato linguístico são as transformações de uma língua causadas pelo constante contato entre pessoas que se comunicam de formas diversas. “Essa visão mais nova entende a língua como um sistema dinâmico complexo, e não um sistema estático, que a gente nasce sabendo. Então, o contato linguístico é uma realidade permanente”, explica Tâmara Rocha. Apesar de não haver consenso entre os estudiosos sobre como exatamente as línguas africanas influenciaram o português brasileiro, “é impossível dizer que não houve algum papel linguístico [do contato] em qualquer nível que seja”, diz a especialista.
Alguns dos problemas encontrados nos livros didáticos sobre o contato com línguas africanas foram a reprodução de estereótipos, equívocos conceituais, antropológicos e literários. A principal queixa da estudiosa é a abordagem pouco crítica dos livros e a omissão de fatos históricos, como a violência contra populações negras e indígenas. Isso é parte do que Tâmara Rocha classifica como um “epistemicídio, que apaga completamente saberes que estão atestados historicamente e linguisticamente no Brasil e mantém o discurso de que essa população não era detentora de saber nenhum”, afirma.
Progressistas, mas depende
A coleção de livros didáticos mais escolhida pelas escolas, e também classificada como a mais problemática, foi a Tecendo Linguagens. Apesar de apresentar posicionamentos progressistas, ela é conservadora na linguagem, classificando o uso da norma padrão como a única alternativa correta de discurso. Os textos também utilizam conceitos desatualizados e há discursos que folclorizam tradições e culturas, reproduzindo estereótipos linguísticos. Em nenhum momento é abordado o tema do contato linguístico.
A pesquisadora considera as coleções Se Liga na Língua e Apoema menos problemáticas. Elas abordam o histórico dos contatos, a existência de variações linguísticas e suas origens. As explicações vão além de apenas mostrar palavras de origem africana e trabalham também a pronúncia e a construção de frases. Ainda assim, Tâmara Rocha diz que os livros poderiam ser mais críticos. “O que tem em comum entre eles é aquela visão do mito das três raças, como se o encontro do branco com o indígena e com o negro tivesse sido harmonioso. Não entram na discussão de que foi um conflito muito severo”, complementa a especialista.
Outro equívoco encontrado foi o uso de narrativas literárias para retratar grupos sociais, como o caipira. Tâmara Rocha diz que essa didática “é muito complicada, porque você ensina as crianças de uma maneira super estereotipada, como se o caipira fosse um dado objetivo do mundo, e não uma construção bastante longa, de uma diversidade de leituras literárias e sociológicas”.
Já a coleção Narrativas Quilombolas: dialogar, conhecer, comunicar, lançada em 2017, é mais realista e crítica, de acordo com a pesquisadora. Primeiro material didático oficial do ensino quilombola feito pelo Estado de São Paulo, o conteúdo foi criado em contato com lideranças de comunidades quilombolas paulistas. Embora haja partes que podem estereotipar a fala rural, o restante da coleção trata as variedades linguísticas a partir de fontes atualizadas e científicas. Isso impede que os quilombolas sejam retratados como personagens do folclore, afastados da realidade, como os outros materiais analisados fazem.
Epistemicídio por quê?
Tâmara Rocha caracterizou o epistemicídio a partir dos trabalhos de Sueli Carneiro, filósofa de reconhecimento internacional e ativista antirracista formada pela USP. “É uma visão de que uma diversidade de instituições na sociedade trabalham numa espécie de rede para manter o status quo do modo como ele está, em uma perspectiva muito particular, que é a racial”, diz Tâmara. A teoria considera que o conjunto das instituições da sociedade é responsável pelo apagamento de conhecimentos africanos.
Apesar de a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) apresentar trechos que orientam as escolas a oferecerem aulas sobre variações linguísticas e o ensino de história e cultura afro-brasileira, africana e indígena, a pesquisadora diz não ser suficiente. “Eu usei muito a BNCC para mostrar o quanto ela justificava tratar essas coisas. E a banca foi para o lado mais crítico, falando que a base tem muito problema, que falta muita coisa. Então, acho que o meu trabalho pode ser usado por outros trabalhos para mostrar uma falta na BNCC”, diz Tâmara.
Segundo a especialista, não são só os materiais didáticos que menosprezam o conhecimento africano. A formação acadêmica de professores e pesquisadores também deixa as populações negras em segundo plano: “eu me formei sem fazer uma disciplina sequer sobre literatura e língua africana”, comenta. Tâmara é formada em Letras pela USP e tem experiência em sala de aula com turmas de ensino fundamental.
A influência das línguas africanas no BrasilA estimativa dos grupos de línguas africanas que mais influenciaram o Brasil tem base nos conhecimentos históricos sobre a origem das pessoas que foram trazidas durante o tráfico. Ao longo do período, essas populações construíram línguas veiculares, usadas para que pessoas com línguas maternas diferentes pudessem se comunicar. Elas tiveram origem no quimbundo (língua banta de Angola), no grupo Gbe (que circularam, principalmente, na região mineira) e no grupo Iorubá (falado em diversos países da África Ocidental). O português era usado como segunda língua. Hoje, ainda existem variações conectadas com a origem africana, como as línguas cultuais, faladas em tradições religiosas afro-brasileiras, e as línguas secretas, criadas para o contato exclusivo entre um grupo de pessoas. Outro exemplo são as variedades quilombolas de português, que usam termos indígenas e do português junto com a morfologia e sintaxe das línguas portuguesa e africanas. ![]() |
*Estagiária sob supervisão de Silvana Salles
Reportagem publicada originalmente no Jornal da USP.
Imagem destaque: As coleções didáticas apresentaram equívocos graves e estereótipos de grupos negros e indígenas – Fotomontagem Jornal da USP com imagens de: Ebrahim/Wikimedia Commons/CC BY-SA 4.0; Hispalois/Wikimedia Commons/CC BY-SA 4.0