Para Bourdieu, “campos” são espaços de luta pelo poder na sociedade
Luiz Prado/Jornal da USP
Em 04.05.2025
O sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002) enxergava a sociedade como uma série de arenas nas quais as pessoas travam diferentes batalhas. Cada uma dessas arenas possui regras e prêmios próprios e suas lutas, mais do que apenas seguir os regulamentos, têm o poder de transformá-los e modificar o próprio campo de batalha no processo.
A definição acima é uma tradução aproximada e bastante simplificada da teoria dos campos, conceito central nas análises empreendidas pelo sociólogo. Por 40 anos, Bourdieu produziu estudos nos quais a ideia de campo foi usada para pensar temas como religião, literatura, ciência, economia, moda, direito e política. Em meados dos anos 1990, era seu projeto organizar um livro que apresentasse uma teoria geral dos campos, com cada capítulo trazendo um elemento da teoria, a partir de estudos de caso.
Bourdieu acabou abandonando a empreitada e não viveu para completar tal obra, mas ela veio à luz graças a um trabalho editorial que agora ganha tradução em língua portuguesa pela Editora da USP (Edusp). Microcosmos: Teoria dos Campos, volume com quase 650 páginas, reúne textos inéditos, trabalhos anteriormente publicados em livros e revistas e artigos revisados e reescritos pelo próprio sociólogo à época da concepção do trabalho. A edição brasileira contou com tradução de Clóvis Marques e do professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP Sergio Miceli.
Conforme os editores avisam na nota de abertura, o livro não é a versão acabada do projeto idealizado por Bourdieu, mas uma obra que tentou imaginar, a partir das anotações deixadas pelo autor, o que ele teria feito se tivesse concluído a tarefa. Isso significa que os editores partiram dos esboços do sociólogo, mas tomaram a liberdade de suprimir ou acrescentar materiais para garantir coerência ao volume.
A ideia central do livro é apresentar os princípios fundamentais para análises centradas nos campos. Isso é feito a partir de estudos de caso que, além de mostrar as particularidades de cada campo, revelam aspectos da teoria válidos para todos os outros. Segundo o autor, os campos possuem leis próprias, válidas para cada um deles, mas também leis gerais e invariáveis.

Em todos os campos, Bourdieu reconhece a existência de lutas entre dominantes e dominados, que pressupõem acordos responsáveis por estabelecer a “crença no valor do que está em jogo”. Ou seja, é dentro do próprio campo que a importância do prêmio em disputa é alimentada: o prestígio entre artistas no campo das artes visuais, o destaque de uma grife no campo da alta costura ou o monopólio dos instrumentos para garantir a salvação das almas no campo religioso, por exemplo.
Há também um capital específico para cada um dos campos, cuja distribuição orienta as estratégias do confronto entre agentes ou instituições. Falando mais uma vez do campo religioso, pode-se pensar como o monopólio dos bens de salvação organizou as ações dos membros do clero da Igreja Católica diante das seitas consideradas heréticas durante a Idade Média.
Além disso, a estrutura de todo campo é algo que sempre está em jogo. Se as disposições das pessoas são condicionadas pelo campo – dito de outro modo, se a maneira de elas se relacionarem tem a ver com a maneira como o campo está organizado –, elas também podem transformá-lo, já que suas ações têm poder de impactar sua dinâmica. Um movimento profético, por exemplo, pode alterar a posição dos agentes e a configuração do próprio capital específico de um campo religioso, por exemplo.

Para Bourdieu, cada campo é um microcosmo, relativamente autônomo, cuja reunião faz o cosmo social. E é a partir dessa fragmentação que o livro vai desenvolvendo o conceito de campo. É importante, contudo, não confundir realidade e conceito. Para o autor, campo é uma maneira de construir os objetos de pesquisa. E, mais do que oferecer respostas acabadas, ele propõe um “sistema coerente de questões”.
Assim, o livro abre explorando a origem e o funcionamento do campo religioso, apresentando a partir daí as estruturas fundamentais dos campos. Bourdieu discute a divisão entre sacerdotes e leigos, a constituição do monopólio dos bens de salvação e o embate entre a burocracia eclesiástica dominante e os desafiantes dominados, representados pelos feiticeiros e profetas.
Em seguida, parte para o campo da alta costura e da política para caracterizar o fetichismo presente nos campos. O sociólogo aponta como a produção da crença nos campos político e cultural os aproxima, graças aos acordos feitos em cada um deles a respeito do que está em jogo e de suas hierarquias. Bourdieu passa então para o campo literário e o campo científico, mostrando seu processo de autonomização. Trata-se de revelar como um campo, a princípio, produz mecanismos que o tornam fechado à influência de outros campos.
A outra face desse processo, a universalização dos campos, é analisada a partir do campo jurídico e do campo burocrático. O autor indica como o desenvolvimento de um campo o faz ganhar capacidade de agregar formas mais amplas e diversas da vida social. Por sua vez, os campos econômico e editorial servem de base para Bourdieu discorrer a respeito das disposições dos agentes do campo, ao mesmo tempo condicionadas por ele e fatores de sua transformação.
Por fim, o volume discute as relações possíveis entre os campos e organiza de maneira sintética os elementos para uma teoria geral. Encontram-se ainda reunidas no final da obra notas inéditas do sociólogo, produzidas para o dossiê preparatório ao projeto. Com elas, os editores procuraram, além de complementar as análises, salientar o caráter exploratório do livro.
“A noção de campo funciona, na prática da pesquisa, como princípio de uma indagação sistemática”, escreve Bourdieu. “Ela permite abordar cada caso particular (o campo das galerias de arte em 1970, o campo dos construtores de casas individuais etc.) sem pressupostos, suscitando, ao mesmo tempo, questões gerais a propósito das características universalmente ligadas ao funcionamento de um universo social enquanto campo. Ela permite pensar analogicamente (e comparativamente) campos funcionalmente diferentes de uma mesma sociedade ou campos funcionalmente equivalentes de diferentes sociedades.”
E o sociólogo segue: “Interrogar um campo singular como um ‘caso exemplar’, uma ‘hipótese’, um momento de uma estrutura que pode assumir diferentes configurações, em suma, como um ‘caso particular do possível’ (isto é, mergulhar no caso particular, mas com um método de construção de objeto), é dotar-se dos meios de escapar à tendência à universalização do caso singular, e levantar questões gerais a propósito do caso particular constituído como tal, em suma, tratar a história como um imenso laboratório de variações experimentais”.
Microcosmos: Teoria dos Campos, de Pierre Bourdieu, Editora da USP (Edusp), 640 páginas, R$ 130,00
imagem destaque:“A noção de campo funciona, na prática da pesquisa, como princípio de uma indagação sistemática”, escreve Pierre Bourdieu – Foto: Arte sobre capa do livro Microcosmos: Teoria dos Campos