O ataque dos gafanhotos gigantes

Por

Ayrton Centeno*

Em 24.07.2020

Arrasado pelo coronavírus, o Brasil acompanha, temeroso, outra ameaça: os gafanhotos estão chegando. São dezenas de milhões e devoram, a cada dia, o mesmo que duas mil vacas. Mal se dão conta os brasileiros que outro e mais voraz ataque está em curso. São gafanhotos especiais.

Devastam a pátria amada sem espalhafato, silenciosa e persistentemente. Preferem broqueá-la por dentro, minar seu organismo e ali se refestelarem. A nuvem atual é a mais numerosa que já se viu desde a Grande Nuvem Negra que se abateu sobre estas terras quase 60 anos atrás.

Os gafanhotos gigantes se distinguem dos comuns. Estes se contentam em comer, defecar, procriar e comer novamente. Seus parentes mais taludos, além de comer, defecar, procriar e comer novamente, tem outros interesses mais sofisticados e nefastos.

Mas há pontos de contato. Como as andorinhas, um gafanhoto só não faz verão. Os gafanhotos que ameaçam trocar a Argentina pelo Brasil acostumaram-se a viver juntos. Formaram uma galera a fim de detonar o que houver pela frente.

Sozinhos, também os gafanhotos gigantes não são nada. Porém, enquanto bando, destroçam um país. Ou mesmo um continente inteiro, rompendo as fronteiras e impondo seu mando e desmando.

O mundo todo lembra com horror o que aconteceu na América do Sul durante a devastação que impuseram nos anos de 1960 e 1970, espraiando-se pela Argentina, Chile, Uruguai, Peru, Bolívia, Paraguai e Equador. Só foram removidos após consumirem dezenas de milhares de vidas.

Os gafanhotos comuns também são chamados acrídios ou ticuras. Na hora do batizado, a entomologia deu-lhes o nome de Schistocerca cancellata.

Os gafanhotos gigantes recebem muitos nomes mas, como são bastante impróprios aos ouvidos sensíveis destes insetos graúdos, muitos não se atrevem a pronunciá-los.

Os comuns se reproduzem através de ovos. Já os gigantes proliferam através de canetadas. Os mirrados comem o que tiverem de comer e vão embora. Os avantajados gostam de encher o pandulho e acampar por ali mesmo à espera de mais.

Enquanto os comuns são marrons e convertem lavouras, ramos e caules em comida, os gigantes são verdes e apreciam devorar somente folhas de pagamento.

Os miúdos sofrem com os agrotóxicos, os graúdos, pelo contrário, até gostam dos venenos agrícolas, sendo simpáticos à sua liberação ampla, geral e irrestrita. Aqueles gostariam de digerir a Amazônia, estes já estão adiantados nessa tarefa.

Embora pequenos, os gafanhotos comuns contam com um tremendo aparelho mastigador capaz de triturar qualquer vegetal. Não é páreo, porém, para as mandíbulas dos gigantes verdes, cuja voracidade abocanha orçamentos monumentais.

Contam os mais antigos que, em 1964, a nuvem arremeteu contra o Brasil e aqui ficou por 21 anos. O país tinha seus problemas mas era livre, vibrante e próspero. Em 1985, ao se dissolver, a Grande Nuvem Negra deixou a nação quebrada e famílias procurando seus filhos perdidos para sempre.

Muitos de nós ficamos surpresos com a agitação dos gafanhotos graúdos, após décadas de sossego. Achávamos que ficariam para sempre pacificados, comendo e dormindo, justamente o que mais sabem e gostam de fazer.

Hoje, porém, a segunda onda já soma mais de seis mil indivíduos enquistados nos mais diversos órgãos do corpo da nação. E tem um apetite insaciável pelo patrimônio nacional construído durante gerações.

A Schistocerca cancellata que espreita nossos campos desde o alto é citada no Velho Testamento, protagonizando uma das 10 pragas do Egito. Moisés adverte o faraó que nunca verá uma praga semelhante.

Sem querer duvidar nem incorrer em heresia, é imperioso dizer que os gafanhotos que devastaram as colheitas do faraó nem de longe se comparam aos gafanhotos gigantes que devoram o futuro do Brasil.

*Ayrton Centeno é Jornalista, trabalhou, entre outros, em veículos como Estadão, Veja, Jornal da Tarde e Agência Estado. Documentarista da questão da terra, autor de livros, entre os quais “Os Vencedores” (Geração Editorial, 2014) e “O Pais da Suruba” (Libretos, 2017).

Artigo extraído da Revista Brasil de Fato.

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