Brasil surreal desemprega roteirista

Por

Eugenio Jerônimo*

Em 25.07.2020

— Um presidente que, sem nenhuma autoridade científica, prescreve remédio e faz propaganda como um camelô? Mas isso não é ficção, é realidade — disse o produtor ao roteirista que lhe apresentava argumentos para realização de um curta-metragem.

Havia pensado o roteiro cinco anos antes. Tratava-se de mera coincidência o fato de que um presidente do mundo real tivesse as características de seu personagem. A vida que estava plagiando a arte, defendeu-se o roteirista.

— Não importa ao público quando a ideia foi concebida. Com toda razão, vai achar que você está fazendo cópia barata da realidade — concluiu o produtor.

Se o roteirista tivesse outra ideia, apresentasse. Essa não dava.

Diante da nova proposta, o produtor se irritou:

— Como é que é? Um ministro do meio ambiente que é contra o meio ambiente? Você está brincando comigo. Um documentário não me interessa, quero um curta de ficção. Esse foi o acordo.

O roteirista trazia outros argumentos. Um ministro da educação que tropeça nos registros ortográficos mais elementares, xinga os professores, luta uma guerra ideológica contra inimigos imaginários e não apresenta nenhum plano para desenvolver a educação nacional. Um diretor negro da Fundação Palmares que se opõe à promoção e à preservação dos valores que decorrem da influência negra na sociedade brasileira. Não se atreveu a mostrar.

— Vou lhe dar um mês para você me apresentar um argumento de um curta de ficção — concedeu o homem que bancaria o filme.

Transcorrido o prazo, o roteirista voltou e expôs o novo argumento.

Este é o enredo. Flagrado caminhando sem máscara, durante a pandemia, um desembargador é multado por um agente da guarda municipal. Reconhece o erro. Pede sinceras desculpas à sociedade. Promete pagar a multa ainda no mesmo dia. Elogia a atuação do guarda, inclusive em francês.

— Ici l’autorité c’est vous.

Entusiasmou-se o produtor.

— Até que enfim uma ficção.

Mas, em seguida, mudou de opinião.

— A realidade pelo avesso não é ficção. Você está demitido.

*Eugenio Jerônimo é escritor. Autor de Aluga-se janela para suicidas (2009, contos); Gramática do chover no Sertão (poesia, 2016); O que eu disse e o que me disseram – a improvável vida de Geraldo Freire (2017, biografia – em coautoria). Escreve aos sabados.

Foto: arte7blog.wordpress.com