Tieta do Agreste e Roque Santeiro: entre a partida e a chegada, a implosão do arbítrio em horário nobre e à cores, a quase 100 pontos de audiência

Por

Mário Gouveia Júnior*

Em 07.08.2020

Hoje, como todas as sextas-feiras, bateu aquela saudade de encontrar amigos numa mesa de bar, lá na (rua) Mamede Simões. Aliás, já pararam pra pensar na riqueza das conversas que rolam numa mesa de bar? Os múltiplos assuntos florescem, noite adentro, nessa libertária artéria recifense. Desde o mais novo meme, passando por críticas ao presidente (sic), comentários sobre algum filme do Kléber Mendonça, letra do Criolo ou clipe da Linker, até os tríplices mistérios do planeta.

Certo dia, veio à tona a discussão sobre a importância dos debates provocados pelas telenovelas dos anos 80 pós-ditadura civil-militar. Logo, foram elencadas duas grandes tramas, que, à época, conquistaram grandes audiências, e, no momento de sua menção, um significativo espaço para uma difícil contenda: “Roque Santeiro” ou “Tieta”? Qual dessas duas novelas teria sido mais marcante? Logo, os participantes daquela mesa redonda improvisada na rua se posicionaram.

A despeito dos resultados da votação, é fato que ambas foram bastante representativas quanto ao que se buscava naquele contexto em que era imperativo lutar por liberdades de expressão em todos os segmentos de nossas vidas. O direito de votar era, talvez, o mais emblemático de todos. Os que pouco se recordam da época, ou sequer haviam sido gerados, deveriam buscar informações a esse respeito. Diversos trabalhos da professora Esther Hamburguer, da USP, podem ser um excelente ponto de partida para quem procura aspectos acadêmicos acerca dos folhetins eletrônicos e suas relações com a História da Vida Privada.

No que concerne às nossas capacidades, objetivos e fôlego, vamos evocar da memória coletiva ensinada por Halbwachs, algumas reflexões de modo que seja possível entender melhor o que essas duas sátiras de costumes fizeram emergir.

Há muitas semelhanças entre as duas histórias, que se desenrolam em pequenas cidades, facilmente identificáveis como microcosmos do Brasil; lugares em que tanto a religiosidade e a sexualidade aflorada coexistem quanto a generosidade e a hipocrisia, havendo espaço, ainda, para a implosão do imaginário patriarcal, tabus familiares, o questionamento de dogmas religiosos e as crenças no sobrenatural. Ambas foram escritas por baianos – Jorge Amado, de Itabuna, Dias Gomes, da capital – e transformadas em telenovelas, adaptadas ao gosto popular, pelo mesmo Aguinaldo Silva, dramaturgo pernambucano, um dos mais consagrados mestres do regionalismo e do realismo fantástico, que brindou o público com grandes histórias ao longo de quatro décadas na TV Globo.

Os protagonistas das duas histórias emprestam seus nomes aos títulos das suas respectivas tramas. Ambas foram releituras que se inspiraram em uma peça de teatro, de Dias Gomes, escrita nos anos 1960, sob o título de “Berço de Herói”, e em um romance de Jorge Amado, publicado em 1977, intitulado “Tieta do Agreste, pastora de cabras; ou A volta da filha pródiga: melodramático folhetim em cinco sensacionais episódios e comovente epílogo, emoção e suspense!”.

Nasceram, portanto, em um dos períodos mais repressivos e obscurantistas vivenciados pelo Brasil no século XX; sobretudo no tocante às produções artísticas, duramente vetadas e censuradas. Nesse sentido, aliás, a obra de Dias Gomes foi censurada como peça teatral, em 1965, e, dez anos depois, também foi vetada pelos censores como novela, em 1975. A ditadura não poderia suportar a exibição, em horário nobre da TV, de uma sátira à Igreja Católica e aos poderosos, que ainda criticava a construção de herois que enalteciam as glórias de uma cidadezinha. Ademais, temas como a reforma agrária e o celibato clerical eram, preocupantemente, postos em cena. Só com a Redemocratização, já em 1985, a novela pôde ser exibida.

É bem verdade que uma série de documentos mostra que tanto Jorge Amado quanto Dias Gomes sempre foram vigiados de perto pelos regimes de exceção; desde a Era Vargas, o autor de Capitães de Areia era perseguido, chegando a ter edições mandadas queimar pelo Ditador brasileiro e mesmo a viver exilado na Argentina e no Uruguai, no começo dos anos 40. Dias Gomes, por sua vez, este mais dedicado a peças de teatro, também foi vítima dos cortes e vetos da censura dos militares, nos anos 60 e 70.

Tanto Roque Santeiro quanto Tieta têm suas vidas totalmente modificadas quando saem de Asa Branca e de Sant´Anna do Agreste, respectivamente, onde nasceram e viveram em condições precárias. As duas tramas estão intimamente ligadas à partida e à chegada; à relação com o tempo, suas permanências e rupturas; e aos “cursos e recursos, de se perder nos múltiplos Lestes possíveis pra renascer em meio a flores de algodão no Coração do Agreste”, parafraseando a magnífica canção de Moacyr Luz e Aldir Blanc.

Nesses dois tempos; partida e chegada, tendo entre eles muitos anos, os dois personagens sofrem consideráveis transformações de si mesmos e de como eram vistos por seus conterrâneos; tudo alinhado com marcantes traços estéticos de literatura de cordel e do folhetim.

Em sua partida, Roque, que era um rapaz muito pobre, e se dividia entre ajudar o padre Hipólito nas missas da igreja matriz e esculpir santos e comercializá-los na feira da pequena Asa Branca, acaba enganando todos na cidade e fugindo com vultosa quantia para São Paulo, enquanto todos pensam que o jovem morrera heroicamente para salvar a cidade. Um mártir, “um homem debaixo de um santo, [que] ficou pra defender seu canto e morreu”, dizia a canção de Sá e Guarabyra.

Tieta, por sua vez, era a cabrita lasciva e promíscua, que envergonhou a família ao ponto de ser expulsa de sua cidade, Sant´Anna do Agreste, pelo seu violento e autoritário pai, e com a conivência de toda a cidade. Enquanto os habitantes de Asa Branca choram a perda do filho-heroi, os conservadores de Sant´Anna do Agreste se comprazem da expulsão da “moça temporã”.

O tempo, compositor de destinos e tambor de todos os ritmos, como já classificara Caetano, faz o humilde sacristão/santeiro virar heroi, e depois santo, com direito a milagre e busto na praça da Matriz, enquanto a Geni indesejável do Agreste se converte em viúva honesta de milionário e filha devotada cujo retorno muda o cotidiano de todos na cidade.

À beira de uma classificação enquanto anti-herois, em suas chegadas cinematográficas, o sarcástico ladrão e a puta empoderada são convertidos em santos; ele, como um santo morto, ela, como uma santa muito viva e de muitas carnes. Ambos alimentam as suas cidades,  ele, por seus supostos milagres, que fizeram Asa Branca crescer; ela por suas influências e poder, uma Joana D´Arc dos pobres, uma madona deliciosamente barroca e contraditória. A luz de Tieta e sua generosidade a colocam por um lado, como santa, enquanto o seu senso libertário lhe permite viver uma paixão arrebatadora por seu sobrinho seminarista. Incesto em horário nobre ao som de Bethânia é só o aperitivo.

Foram muitos os temas sensíveis que vieram à tona nas duas histórias; abuso sexual, fanatismo religioso, concubinato e cárcere privado, hipocondria, prostituição, alcoolismo, poliamor, transexualidade, reforma agrária, amores proibidos pela Igreja. Muitos desses temas deram tanto o que falar quanto os seus vilões e vilãs. É Aguinaldo Silva quem nos ensina que uma boa trama precisa de um antagonista que desperte as piores paixões dos espectadores; é por conta dele, muitas vezes, que as odisséias dos protagonistas encontram sentido. Os inesquecíveis Sinhozinho Malta e Viúva Porcina; a impagável Perpétua, certamente fizeram o contraponto perfeito com Roque e Tieta.

Sobre esses dois protagonistas é interessante perceber que nenhum deles cabe mais em suas cidades natais; são cidadãos do mundo! Ele, personifica o afamado Cometa Halley, ela, é cabrita sem dono nem cabresto. Gosto de pensar, às vezes, num encontro entre os dois, “perto do mar, longe da cruz”, só pra citar o poeta baiano leonino e genial que faz aniversário hoje. E por falar em genialidade, o que dizer das trilhas sonoras das duas novelas?

São espetáculos à parte, com compositores e intérpretes que marcaram época por suas músicas, ainda hoje na cabeça do povo, como Alceu Valença, Baby do Brasil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Dominguinhos,  Elba Ramalho, Fafá de Belém,  Fagner, Gal Costa, João Bosco, José Augusto, Luiz Caldas, Maria Bethânia, Moraes Moreira, Nana Caymmi, Nando Cordel, Pepeu Gomes, Roberta Miranda, Sá & Guarabyra, Simone, Tim Maia, Wando e Zé Ramalho. Nesse sentido, cabe considerar que a maioria desse time, nata da música brasileira de ontem e de hoje, vem do Nordeste.

Por essas e outras questões que vou me eximir de mencionar, afinal, não quero dar ‘spoilers’, é que essas duas novelas estão entre as mais assistidas de todos os tempos da TV brasileira. Histórias ambientadas no que há de mais genuíno de nosso povo, da comédia e da tragédia brasileiras, do sobrenatural e do fantástico que permeiam as nossas lendas, muitas delas provenientes desse pedaço do Brasil feito de gente de “coração, festa e trabalho”, como dizia Gonzaguinha.

Eu estou falando do Nordeste. Esse Nordeste, em que “tudo que pesa, cai no Sul”, já diziam Newton e Belchior; esse Nordeste de bravos, de antes de tudo, fortes, como já dissera Euclides da Cunha; esse Nordeste, que, ao ser descoberto, ainda que, por vezes estigmatizado, reinventou o Brasil em horário nobre e à cores, a quase 100 pontos de audiência.

*Mário Gouveia Júnior é professor acadêmico, mestre em Ciência da Informação. Escreve às sextas-feiras.

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