Dossiês, servidores públicos e os conflitos internos da Administração Pública

Por

André Cyrino* e Anna Carolina Migueis Pereira**

Em 19.08.2020

Nos últimos dias, a imprensa noticiou que a Secretaria de Operações Integradas (Seopi), órgão do Ministério da Justiça, teria elaborado dossiês com informações sobre mais de 500 servidores públicos federais e estaduais. Foram objeto de investigação, sobretudo, professores e agentes da segurança, os quais participariam de movimentos antifascistas.

O episódio já é objeto de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) e escancara a relação mal resolvida do Estado brasileiro com o autoritarismo, assim como a juventude do nosso regime democrático. Além disso, revela algo mais singelo, porém de grande relevância para aqueles que almejam a boa gestão da coisa pública: a existência de conflitos entre aqueles que compõem a Administração Pública.

O tema não é novidade para as ciências da Economia e da Administração, nas quais é frequentemente estudado sob a perspectiva da teoria da agência. De maneira simplificada, uma relação de agência é aquela em que uma pessoa (o principal) delega a outra (o agente) a execução de determinada tarefa em seu nome com alguma autoridade para tomar decisões. Essa espécie de vínculo permeia inúmeras relações sociais, tanto em organizações públicas quanto privadas.

Nas organizações públicas, existem inúmeras cadeias de relações agente-principal, que se iniciam com os cidadãos-eleitores, passam pelos agentes políticos e chegam até os servidores públicos. Nessas cadeias, os agentes políticos atuam simultaneamente como agentes dos eleitores e como principais dos servidores públicos, tendo em vista que exercem suas funções em nome e em benefício dos administrados, mas comandam a atuação do corpo burocrático. Já servidores públicos são agentes tanto dos políticos que lhes dirigem quanto dos particulares, a quem, em última análise, servem.

A teoria da agência ilumina as dificuldades da gestão coletiva de qualquer organismo de pessoas (público ou privado), e contribui para o estudo sobre os conflitos entre agentes e principais. Segundo essa perspectiva, as vontades de agentes e principais nem sempre são coincidentes e, com frequência, os agentes, ao atuarem na ponta da cadeia, disporão de mais informações que os principais. Ademais, é comum que agentes tenham menor apetite a riscos, o que faz com que cada um tenha uma abordagem diferente para enfrentar determinado problema. As disputas que emergem em relações agente-principal são chamadas de problemas ou custos de agência [1].

A divergência entre os interesses e as preferências de agentes e principais pode ocorrer nas mais diversas esferas. A título de exemplo, ela pode ser: I) técnica, quando comandantes e comandados discordam quanto ao método mais adequado para o enfrentamento de uma situação; II) orçamentária, quando a dissonância se refere a percepções diversas sobre o quanto seria possível ou recomendável se gastar com dada situação, e/ou a que tipos de despesas devem ser consideradas prioritárias; e III) ideológica, quando agente e principal dissentem em relação ao campo político de sua predileção.

Quando os conflitos de agência ocorrem, tanto principais quanto agentes podem utilizar-se dos instrumentos de que dispõem para impor a sua própria vontade. Principais se valem de seu poder hierárquico para demitir (quando possível), realocar ou esvaziar atribuições de agentes destoantes. Por sua vez, agentes acionam ferramentas de resistência, como descumprimento de ordens, imposição de padrões mais rígidos de controle interno, “operações-tartaruga” e os conhecidos “embargos de gaveta” (em que processos administrativos ficam esquecidos nos escaninhos da Administração), bem como denúncias à imprensa e a órgãos de controle.

O caso dos dossiês produzidos pelo Ministério da Justiça mostra uma das facetas mais obscuras dos problemas de agência dentro da Administração Pública: a possibilidade de utilização do aparelho estatal por agentes políticos (principais) para perseguir servidores públicos (agentes) que manifestam preferências político-ideológicas divergentes.

Nada obstante, os dilemas de agência nem sempre conduzem ao enfraquecimento de instrumentos democráticos. Há casos em que agentes se valem dos espaços deixados pelas relações agente-principal para resistir a tendências autoritárias dos principais [2], como ocorreu em outro episódio recente em que servidores de órgãos ambientais publicaram uma nota técnica contrária a políticas conduzidas pela atual gestão da pasta e ao aumento do desmatamento na região da Amazônia.

A percepção sobre a complexidade das relações existentes dentro da Administração Pública é, em alguma medida, novidade para o Direito Administrativo brasileiro, acostumado a teorias tradicionais que não captam a realidade concreta das entranhas no Estado. A teoria do órgão e a noção de hierarquia são insuficientes para a compreensão do fenômeno organizacional público. Através das lentes da teoria da agência, a ideia de que o agente público é um representante do Estado que traduz sua vontade numa lógica hierárquica vinculada à lei mostra-se, no mínimo, imprecisa.

Essas visões tradicionais podem ser úteis para viabilizar a responsabilidade e a responsividade do Estado [3]. No entanto, são insuficientes para que se possa compreender de maneira adequada os conflitos internos que ocorrem na Administração. O estudo da teoria da agência é um primeiro passo para o aperfeiçoamento dessa análise no âmbito jurídico. Inclusive para que o Direito Administrativo seja, em maior medida, ferramenta efetiva contra o arbítrio que pode corroer a legitimidade da atuação estatal.

[1] Os problemas de agência aqui listados são abordados de maneira, naturalmente, simplificada em relação à literatura especializada, conforme os limites deste tipo de artigo. Para maiores considerações sobre o tema, ver PRZEWORSKI, Adam. Sobre o desenho do Estado: uma perspectiva agente x principal. In: PEREIRA, Bresser (org.). Reforma do Estado – Administração Pública Gerencial, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 45 e ss.

[2] GINSBURG, Tom; HUQ, Aziz. How to Save a Constitutional Democracy. Chicago: The University of Chicago Press. 2018. p. 225.

[3] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Apontamentos sobre a teoria dos órgãos públicos. Revista de Direito Público, v. 4, n. 16, pp. 30-37, abr./jun. 1971, p. 34.

*André Cyrino é professor adjunto de Direito Administrativo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor e mestre em Direito Público pela Uerj e Master of Laws pela Yale Law School (EUA).

**Anna Carolina Migueis Pereira é doutoranda e mestre em Direito Público pela Uerj.

Artigo publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico.

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