Uma noite em 67, outra em 2020, ou “das vaias e da incompreensão dos dissensos”

Por

Mário Gouveia Júnior*

Em 28.08.2020

Sextou mais uma vez. Acordei cedo, cumpri minha rotina de exercícios e meditação em jejum até que fosse possível eliminar algumas toxinas, tensões e calorias. Então, ao voltar para casa pensando em qual seria a temática deste ensaio, avistei um carro antigo, que me chamou a atenção tanto por seu excelente estado de conservação quanto pelos números presentes em sua placa: 1967.

Por mais que eu seja entusiasta de, no meu fazer historiográfico, buscar a superação do foco nas datas e fatos e pensar numa história das mentalidades, vista de baixo, como inclusive já defendi em textos anteriores por aqui, não posso negar que aqueles números mexeram comigo. Fui remetido a um momento histórico vivenciado no Brasil, que só conheço das minhas leituras, interpretações e reflexões em livros e discos e dos meus debruçares sobre filmes e documentários daquela época. Mediatização, então, sempre imaginei a segunda metade dos anos 60 como um momento cultural e politicamente efervescente, que fez nascer, ou reacendeu, dois sentimentos que se antagonizam: aquiescência e resistência.

Sabemos que, instalado o regime de exceção focado em vigiar e punir, adesão ou aversão começaram a se configurar, para muitos, como uma contenda da qual ninguém poderia se eximir de tomar partidos. Enquanto foi possível, e as implacáveis mordaças ainda não se haviam estabelecido de todo, aqueles que partilhavam do entendimento de se manifestar publicamente o faziam contra tudo e contra todos que, sob a sua ótica, fossem contrários à liberdade popular e à autonomia nacional; política ou cultural.

Assim, apesar da vigilância e repressão em todos os segmentos da sociedade, emergiram diversas formas de protesto contra a ditadura civil-militar. No âmbito da música, canções de protesto tiveram amplo alcance popular por meio dos festivais de música promovidos por emissoras de televisão, principalmente em São Paulo. O sucesso era tanto que, no local onde as músicas eram apresentadas, o público que se acotovelava para ver seus intérpretes e ouvir suas canções favoritas, representava um espetáculo a parte, não guardando qualquer cerimônia em vaiar as canções das quais não se agradava, sobretudo se ali estivesse presente o som das guitarras elétricas.

Já em 1967, enquanto Os Beatles já haviam definido um marco na história do Pop/Rock ocidental ao lançarem o Sgt. Pepper´s Hearts Club Band na mesma Londres que viu, poucas semanas antes, o lendário e performático Jimi Hendrix tocara fogo em sua guitarra pela primeira vez, em um show extasiante, a Avenida Brigadeiro Luís Antônio, em São Paulo, viu desfilar a “Marcha contra a Guitarra Elétrica”, comandada por Elis Regina e Jair Rodrigues, entre outros artistas de expressão nacional. Buscavam defender a música nacional de uma invasão estrangeira e de seus instrumentos representativos daquela cultura “alienígena”. Curiosamente, pouco tempo depois, os próprios Gil e Elis se renderiam ao som frenético dos “eletrosônicos”. Alerta de anacronismo, já que o adjetivo neologista foi criado décadas depois. Valeu, Jorge du Peixe! Não encontraria melhor definição.

Foi também em 1967 que aconteceu o 3º Festival da Música Popular Brasileira, apontado por muitos como a edição do concurso de canções e intérpretes mais badalada dos dentre os festivais realizados. Dele o público viu nascer para o sucesso ou pôde ratificar  talentos que se consolidariam na música popular brasileira como Caetano Veloso, Chico Buarque, Elis Regina, Edu Lobo, Jair Rodrigues, Nana Caymmi, Gilberto Gil e Roberto Carlos, entre outros. Boa parte deles, no entanto, temeram as reações adversas do público.

Enquanto uns se saíram muito bem, e nos brindaram com letras que permanecem até hoje no nosso imaginário, como “Roda Viva”, “Domingo no Parque” e “Alegria, Alegria”, outros, como o cantor e compositor Sérgio Ricardo e seu “Beto bom de Bola”, não tiveram a mesma sorte. Ao subir ao palco do Teatro Paramount, na noite do dia 21 de outubro, só o que se ouviu foi a manifestação de desagrado do público, e ele não só não conseguiu cantar, como, revoltado, estraçalhou o violão e o arremessou para a plateia, não sem antes reconhecer, indignado, o mítico: “ok, vocês venceram!”.

Teria Nélson Rodrigues razão ao afirmar que a vaia era uma manifestação mais sincera do que o aplauso, e, portanto, mais legítima forma de comunicação entre espectadores e artistas? No caso específico das vaias proferidas neste festival da canção, há quem atribua a sua origem à eliminação da música “O combatente”, interpretada por Jair Rodrigues. Como significativa parte do público torcia por ele, a decisão dos jurados não agradou ao público. Daí a história contaria o quase que inacreditável episódio em que Nana Caymmi subiu num palco ao lado de Gilberto Gil e foram vaiados! O próprio Gil tivera uma crise de pânico horas antes de defender seu “Domingo no Parque” ao lado de Os Mutantes. Ao vencer o medo e enfrentar uma turba enfurecida, vimos nascer dos maiores gênios de nossa música.

Entre guerrilhas e cardinales bonitas, rodas gigantes, roda moinhos, roda piões, girando, girando sem feira, sem construção, sem brincadeira, sem confusão, o Brasil despertou para a MPB e para o Tropicalismo, por entre afinadíssimos violões e guitarras elétricas distorcidas, cada um ao seu modo, divinos, maravilhosos, de caráter particularmente nosso e ao mesmo tempo universal. Com rimas ricas, ritmos pulsantes, palavras de ordem que marcaram uma geração traduzidas em canções de ícones geniais. Numa época em que o dissenso, cada vez mais, era evitado pelos donos do poder, usar a música como forma de posicionamento crítico era um caminho legítimo até que a legalidade imposta vigente os tornasse ilegais, impublicáveis.

No ano seguinte, no IV Festival da Música Popular Brasileira, outro capítulo a parte, diante da total incompreensão da plateia ante a interpretação de “É proibido proibir”, um Caetano Veloso indignado questionou se era essa a juventude que queria tomar o poder no país [uma juventude que não tinha coragem e não se dispunha a ouvir].

“…Mas a vida não se resumia a festivais”, profetizava o injustiçado Geraldo Vandré, e assim, chegamos à uma noite em 2020 em que, no meu fazer docente, em meio a uma aula remota, inegável marca desses novos tempos do cólera sem amor, me vi questionado por sujeitos que se faziam passar por alunos. De modo descortês, deselegante, explodiu a inquisição: se eu achava mesmo interessante promover um debate em que muitas pessoas não concordariam com meu ponto de vista. Dois pseudo alunos, a ocultar suas próprias imagens, talvez por lhes faltar a mesma coragem que Caetano cobrara da juventude, 53 anos atrás, se dispunham a questionar, em pleno processo de construção de conhecimento, que nunca se fez pelo consenso, se havia a necessidade de promover um debate em uma aula, quando era notório que haveria divergências de posicionamento.

Falávamos sobre a importância da Informação, em meio a sua qualidade, precisão e relevância, bem como da existência de uma enxurrada de fake news promovida, inclusive, por órgãos governamentais.

A grande questão presente na celeuma é que vivenciamos tempos em que, cada vez mais, um grupo de pessoas tem menosprezado a ciência e os centros de produção de conhecimento, como as faculdades e universidades. Importa para os que assim pensam a resposta imediata, invariavelmente, intermediada por plataformas digitais. Tempos atrás, em um artigo científico, cheguei a considerar o site de buscas mais popular de nossos tempos um “oráculo pós-moderno”, posto que todos vão a ele a procura de respostas, ainda que não saibam fazer as perguntas. No entanto, o que se vê hoje é muito mais pessoas acreditando em informações e vídeos provenientes de redes sociais como o whatsapp e tomando-lhes como prova irrefutável de seu conhecimento.

Talvez por menosprezar aquilo que não entendem ou não alcançam, tal como na fábula da raposa e das uvas, é que certas pessoas podem questionar a relevância dos dissensos. Bem sabemos, os acadêmicos – e mesmo os que não curtem academicismos, como eu – que o diálogo é processo fundamental para construção do conhecimento. Mais ainda quando se permite oportunidade de fala e posicionamentos contrários ao do docente. Alguém que se posiciona dizendo que um professor não deveria trazer este ou aquele conteúdo para sala de aula por ele provocar uma situação de discordância, não entendeu nada sobre os processos de aprendizagem.

Ideias que divirjam não são incongruentes com os processos de partilha de saberes, uma vez que a própria ciência se faz de dissensos e não de consensos; não se faz de silêncios, provocações, arrogâncias, apontares de dedo ou ameaças. No âmbito da ciência, constroem-se modelos e paradigmas que atendem às suas demandas e às necessidades da sociedade, e, à medida que deixam de responder a essas necessidades, e surgem crises, por exemplo, promovem-se novos debates em busca de novos modelos. Aí está contida a filosofia de que, como produtores de conhecimento, devemos buscar a mesma boa ancestralidade que recebemos como legado das gerações passadas. E, neste caso, ser um bom ancestral é proporcionar meios para que as gerações futuras, mas também os nossos educandos, possam contribuir para a ciência e para a sociedade num nível mais profundo do que o nosso. Trata-se da lógica de correr o quanto possível e passar o bastão para outros. É assim que o discípulo deve necessariamente superar o mestre, identificando, por vezes, inclusive, erros no seu antecessor e melhorando o seu trabalho, sem desmerecê-lo.

O posicionamento de ideias contrárias, assim, é fundamental, mas se deve fazer em um ambiente de respeito mútuo. Hoje como professor, mas sempre me percebendo como eterno aprendiz, inclusive para aprender com meus educandos, partilho o entendimento e a visão freireana de que é fundamental respeitar a diversidade de saberes provenientes dos meus educandos, bem como respeitar a diversidade de pensamento. Que nenhuma visão obscurantista e redutora possa calar a liberdade que temos de pensar diferente!

*Mário Gouveia Júnior é professor acadêmico, mestre em Ciência da Informação. Escreve às sextas-feiras.

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