O fator emoção como garras sutis do capitalismo

Por

Nelino Azevedo de Mendonça*

Em 09.09.2020

O neoliberalismo é uma mutação do capitalismo, uma atualização para que o capitalismo financeiro possa fazer frente e dominar as complexas e céleres transformações impressas no mundo atual. E a principal transformação a ser compreendida é que o seu modelo disciplinar, baseada no controle e na punição, está cada vez mais ficando no passado. Esse sistema é marcado fortemente pela produção industrial. Nesse modelo, o centro da exploração é o corpo (biopolítica). Como eu disse, esse modelo está ficando para trás. Nos dias atuais, o centro de exploração do neoliberalismo é a alma (psicopolítica). É a psique que interessa hoje ao sistema para fazer valer o seu domínio sobre todas as coisas e pessoas. Por isso, nas últimas décadas temos presenciado uma enxurrada de cursos e workshops que prometem treinamentos infalíveis para garantir eficiências na gestão pessoal, na capacidade motivacional e na inteligência socioemocional. O que não se percebe, claramente, nesse processo é que a preocupação não é com as pessoas, com a sua felicidade, mas com a engrenagem que move o sistema e faz multiplicar exponencialmente o seu capital. O que importa são pessoas motivadas para fazer girar essa engrenagem.

O filósofo Byung-Chul Han (2018) diz que o capitalismo de consumo tem como prioridade introduzir emoções para criar necessidade e estimular compra. Nesse sentido, o que passa a ter mais valor é a produção imaterial, é esse tipo de produção que vem prevalecendo no mundo atual. De acordo com Han, “coisas não podem ser consumidas infinitamente, mas emoções sim. Emoções se desdobram para além do seu valor de uso. Assim, inaugura-se um novo e infinito campo de consumo” (psicopolítica – o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2018, p. 66).

Isso pode ser verificado a partir dos diversos exemplos que se multiplicaram nos últimos anos com as grandes empresas e corporações que passaram a adotar o treinamento de seus funcionários para aumentar significativamente a sua produtividade, com eficiência e eficácia. Estabelecer o princípio da meritocracia também foi algo determinante para fazer valer o foco no aspecto motivacional como estratégia para garantir metas ousadas de produção e eficiência nos locais de trabalho. É preciso fazer as pessoas acreditarem, insuspeitavelmente, que farão a sua felicidade na medida em que garantirão sua capacidade de produzir mais e melhor, com mais eficácia e excelência. Dessa forma, estão sedimentando o pavimento do seu caminho para a obtenção do bem-estar pessoal e social.

O sistema neoliberal atualiza-se na mesma velocidade em que ocorrem as transformações tecnológicas mais sofisticadas. Por isso, ele terá sempre as técnicas de dominação mais adequadas para cada tempo histórico. O que não se vê, porém, é a priorização do ser humano nesse sistema. As pessoas serão sempre preteridas em detrimento das coisas. O que importa é o binômio produzir-consumir. No entanto, para isso, as pessoas precisam estar adaptadas e qualificadas para atender as exigências e requisitos desse modelo. E hoje, a exigência fundamental é que estejam sãs ou curadas de qualquer bloqueio mental que prejudique a sua capacidade de desempenho. Por isso o fator emoção é tão prioritário e determinante para a garantia da otimização pessoal. Então, nessa lógica, o que importa é atuar na psique. Curar de forma terapêutica qualquer debilidade emocional que atrapalhe o bom desempenho individual ou funcional de alguma equipe.

Nesse processo de otimização do ser humano não se verifica uma autêntica preocupação com as pessoas. Não se faz um investimento nos aspectos socioemocionais visando ao bem-estar do indivíduo a partir das questões relacionais que envolvem a ética, a alteridade, a solidariedade, a amorosidade. O neoliberalismo cria novos contornos para lidar com as questões da emoção e do afeto. O processo que se faz não é de formação humana, mas de treinamento, pois o que importa é eliminar qualquer deficiência emocional que atrapalhe a obtenção das metas estabelecidas e, por isso, é tão importante manter o controle de cada pessoa, enquadrando-a perfeitamente dentro do modelo de eficiência e desempenho necessário para fazer o sistema funcionar cada vez melhor.

Parece-me fundamental fazermos uma leitura das sutilezas que nos amarram a essas garras estranhas e sutis do capitalismo.

Nesse novo capitalismo, a psique ganha importância fundamental para fazer valer a perpetuação do sistema e por isso, também, vivemos uma era de tantos adoecimentos e distúrbios causadores da depressão. Desse modo, a emoção passa a vigorar como requisito imprescindível para garantia mais eficiente das diversas formas de produção e, também de consumo. Han (2018) afirma que “A partir de certo nível de produção, a racionalidade, que representa o medium da sociedade disciplinar, atinge seus limites. Ela é percebida como uma restrição, uma inibição. De repente, a racionalidade atua como forma rígida e inflexível. Em seu lugar, entra em cena a emocionalidade, que está associada ao sentimento de liberdade que acompanha o livre desdobramento individual” (p. 65).  Parece-me fundamental fazermos uma leitura das sutilezas que nos amarram a essas garras estranhas e sutis do capitalismo. Precisamos de uma leitura iniludível para manter a emoção e o afeto no campo da convivência que humaniza.

*Nelino Azevedo de Mendonça é professor, mestre em Educação e membro da Academia Cabense de Letras. Escreve às quartas-feiras.

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