O amor como urgência
Nelino Azevedo de Mendonça*
Em 13.01.2021
O temor que rodeia as nossas vidas nesse cotidiano tão inóspito e inseguro nos assombra como se estivéssemos num roteiro de um filme trash de terror. Do tiro certeiro das balas perdidas; das dores inquebrantáveis dos feminicídios; da violência nos morros contra pretos e pobres; das cores feridas do arco-íris multicor agredidas pelo nazi-fascismo da lgbtfobia; da destruição das florestas e do genocídio contra os povos indígenas; do menino e da menina que perambulam nas ruas numa forçada e criminosa jornada por um pedaço de pão; dos idosos e idosas que vivem de mãos estendidas à espera de reles moedas da madrasta pátria amada; do cretinismo negacionista oficial que joga nas valas vidas humanas e desqualifica a ciência, a decência e a dignidade de quem luta por um novo amanhecer; da precarização e arbitrariedades do Estado que sem ética sonega direitos e cidadania. Tudo isso soa como se tivéssemos perdido a noção de dignidade e de respeito à vida, às outras pessoas e a nós mesmos. Nesse sentido, vivemos numa sociedade em que as pessoas se tornaram completamente excluídas da ordem civilizatória e fora do bem-estar, numa condição que o filósofo Giorgio Agamben chamou de homines sacri.
Essa violência sistêmica vem nos afetando num grau tamanho que corremos o risco de nos individualizar de tal forma que o outro seja apenas um resíduo que descartamos para não termos que nos ocupar com algo que não valha a pena. O ser humano como produto descartável, sem valor algum, que sequer retornará à prateleira, como faz o capitalismo selvagem com os produtos que vão ao lixo, reciclando-os e repondo-os nas vitrines. O ser humano que faz a via crucis que vai do objeto ao abjeto. Que perde a noção de si e por isso perde também a noção do outro, desconstruindo-se plenamente em sua humanidade, incorporando em si mesmo um adoecimento narcísico, espécie de amor próprio às avessas (todo amor próprio às avessas é desamor), que, na maioria das vezes, leva a pessoa a sofrimentos intensos da alma, da mente e do coração, gerando distúrbios psíquicos, depressões e suicídios.
A violência enraizada no tecido da sociedade se apresenta explicitamente tanto pela violência estrutural como também pela violência simbólica. De acordo com Byung-Chul Han, “Tanto a violência estrutural quanto a violência simbólica necessitam da relação de dominação, das relações de classe antagônicas e hierárquicas. Elas são exercidas pelas classes dominantes sobre as dominadas, pelos detentores do poder sobre os que estão submetidos a ele …”, (do livro Topologia da violência, Vozes, 2017, p.163). Esse processo de violência exercido pela classe dominante sobre as classes dominadas é fruto do capitalismo global que se impõe sobre os indivíduos, excluindo-os e aniquilando as suas humanidades.
Contudo, a violência sistêmica que é própria da sociedade de desempenho – diferente da violência estrutural e da violência simbólica que são violências da negatividade –, caracteriza-se não pela exclusão, mas pela inclusão das pessoas, impulsionando-as a um processo de autoexploração, pois o sistema necessita de que todos estejam incluídos para produzirem cada vez mais. Dessa forma, a violência sistêmica, enquanto violência da positividade, torna-se muito mais complexa e difícil de ser percebida, pois ela está entranhada no próprio sistema, não tendo claramente um sujeito de presença física como algoz. Como afirma Han (2017), “Por isso, a violência da positividade é provavelmente muito mais danosa do que a violência da negatividade”. Ela se manifesta inclusive como exaustão, excesso de informação, excesso de acumulação e superprodução, e mesmo assim, geralmente, não é vista como violência. Han (2017, p.169) diz que “À violência sistêmica, enquanto violência da positividade, falta a negatividade do impedimento, da recusa, da proibição, da exclusão e da subtração”, fatores que não faltam à violência estrutural e à violência simbólica.
Por todas essas mazelas sociais e violências desenfreadas, precisamos do amor como urgência. Do amor que os gregos antigos chamaram de ágape. Esse amor pleno e profundo que está acima de qualquer intencionalidade. O amor desprovido de qualquer valor utilitarista. O francês Luc Ferry afirma que “Ágape é a inteligência do amor, a sabedoria do amor que consiste em deixar todo o espaço para o outro, deixá-lo ser, deixá-lo livre: é o verdadeiro amor” (Do amor: uma filosofia para o século XXI. DIFEL, 2013, p.69).
Ágape é o amor que está para além do amor philia, que é o amor sem cálculo, o amor da gratuidade que se contenta e se alegra simplesmente com a presença, com a existência do outro ser. Ágape é muito mais que o amor sem cálculo, como diz Ferry, é o amor antirracional, no mínimo radicalmente antiutilitarista. O amor ágape também ganha uma ampliação do seu sentido a partir da teologia cristã, que é a ideia do amor pelo inimigo. Essa atitude tão difícil de ser praticada, principalmente quando nos defrontamos com ditadores, tiranos ou genocidas. Atitude que nos aponta o caminho de que precisamos afirmar, para além da sua desumanidade, mesmo reconhecendo-o como inimigo, que não devemos abrir mão de tratá-lo com humanidade. Há, contudo, um equívoco ao reconhecer o sentido de ágape como caridade. Esse sentido também denota a ideia de piedade, que é uma forma equivocada de entender ágape em seu verdadeiro valor semântico (FERRY, 2013). Compreender, inclusive, que o amor ágape vai muito além do sentido que as instituições religiosas lhe impuseram.
A vida pede o amor como urgência.
Precisamos urgentemente desse amor que liberta, que deixa ser livre e nada pede em troca. Desse amor incondicional que acolhe, cuida e se entrega plenamente sem interesses ou cobranças de reciprocidade. Mas também desse mesmo amor que não admite imposições e se rebela contra as injustiças e tiranias em nome da dignidade humana. Que não contemporiza com as diversas formas de exclusão e negação da vida. Que não se isenta diante dos horrores que afrontam, negam e atacam os direitos humanos e ferem de morte corpos, mentes e corações. A vida pede o amor como urgência.
*Nelino Azevedo de Mendonça é professor, mestre em Educação e membro da Academia Cabense de Letras. Escreve às quartas-feiras.
Foto destaque: Internet
Parabéns , Nelino , pelo teor da abordagem.
Sim, o amor pede urgência para restabelecer nossas humanidades. Lacunas vão tecendo as turbulências da vida potencializadas pelo desamor…
Excelente texto!!!
Obrigado Vera Braga pelo comentário.
A vida exige essa urgência do amor.
Abraços
Parabéns, Nelino, pela rica abordagem sobre o amor!
Obrigado, Vera Rocha, grato pelo comentário. Abraços