Criminalização da LGBTIfobia: mudanças no cenário de proteção de direitos dos LGBTI+

Por

Bruno Serafim dos Santos e Gabriela de Carvalho Barbosa*

Em 13.01.2021

Em 2019, 329 pessoas da comunidade LGBTI+ tiveram morte violenta no Brasil. Os dados, ainda que pareçam objetivos, escondem uma realidade muito mais complexa, profunda e que não pode ser mensurada por quaisquer métricas já criadas: a homofobia marca o cotidiano brasileiro, está em todas as instâncias e espalhada por todos os setores sociais.

A violência homotransfóbica vai para além das mortes e dos atos de violência física — já em número elevado —, ela está presente em microagressões do cotidiano, de forma física e simbólica, na repressão de minorias e na exclusão dos grupos em âmbitos sociais e culturais, indo de simples olhares repressores, passando por exclusões no mercado de trabalho, chegando, por fim, às estatísticas das mortes violentas.

Há mais de um ano foi julgada pelo STF a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26 (ADO nº 26/DF) e declarada a criminalização da homofobia e seu enquadramento à Lei de Racismo (Lei 7.716/1989). Ainda com todas as divergências doutrinárias quanto ao julgamento e as oposições à declaração do STF, deve-se analisar a decisão e enxergar a sua importância no contexto brasileiro.

Ainda que a referida decisão tenha sido interpretada como ativismo judicial descabido por uma parte da doutrina, ela representa a luta de séculos da comunidade LGBTI+ em busca de igualdade e proteção dos seus direitos. Necessário rememorar que a homossexualidade teve sua retirada do rol de doenças da OMS somente há pouco mais de 30 anos e o estado de mora para criação legislativa de um dispositivo de amparo à comunidade LGBTI+ se estende até os dias atuais, ora: a Constituição Federal, eu seu artigo 5°, inciso XXXVI, versa de forma imperativa que devem ser punidos os crimes que atentam contra quaisquer direitos fundamentais garantidos por ela e, nesse sentido, o Legislativo está ignorando uma determinação constitucional.

Não se pode olvidar da urgente necessidade desse amparo, a nova interpretação conferida à Lei de Racismo não é a primeira ocasião em que esse tipo de diretriz expansiva é tomada em razão da ausência de lei: já verificamos precedência desse tipo de situação no “caso Ellwanger” (HC 82.424/RS, Tribunal Pleno), por exemplo.

Em breve retrospecto, no “caso Ellwanger”, o STF delineou uma interpretação sobre o termo “raça”, atribuindo a ele o significado de processo político e cultural de separação de grupos, assim sendo, não seria a raça algo genético e idealizado a partir de conceituações biológicas. O racismo, em sentido social, é construção social que se espelha em todas as relações humanas e se embasa na criação de diferenças para inferiorização de determinados grupos sociais. O STF nos trouxe naquele momento a definição de raça a partir de uma “compatibilização dos conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a definição jurídico-constitucional do termo. Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram sua formação e aplicação, a fim de obter-se o real sentido e alcance da norma”.

Foi a partir desse precedente que o STF teve delineamento para traçar as diretrizes do julgamento da ADO, pautando-se para tanto no estado de mora legislativa e da omissão da lei quanto no tratamento da violência homotransfóbica.

Nesse interim, não se enxerga mero ativismo descabido a partir de analogia legislativa, mas, sim, o entendimento de que a interpretação literal não pode prosperar nessa conjuntura, a interpretação pode e deve ser extensiva, uma vez que o conceito de raça é cultural e não biológico. O Judiciário, no julgamento da ADO, precisou intervir no sentido da preservação e promoção dos direitos fundamentais da comunidade LGBTI+.

Passado o ponto referente à legitimidade da decisão, deve-se vislumbrar que, em verdade, há na criminalização uma vitória muito mais simbólica do que de fato estatística, a qual coincidiria com uma diminuição no quadro de violência praticada contra a comunidade LGBTI+. Não é também uma vitória legislativa, posto que não há criação de lei, mas é importante ter em mente o sentido da criminalização nesse caso: que não é simplesmente de supressão da prática punitiva, mas a proteção das pessoas acometidas pela violência homotransfóbica, gerando o respaldo jurídico necessário para proteção dos grupos vitimizados pela prática punitiva e sua adequada repressão, e efetivamente foi o que a nova interpretação a partir do julgamento do ADO nos trouxe.

Deve-se pautar as mudanças que ocorreram no cenário de proteção dos direitos LGBTI+ no âmbito do Direito Penal, e nessa esfera, a criminalização não serviu exatamente à erradicação das condutas a que foca sua repressão, mas tornou simbólica a vitória da comunidade LGBTI+, solidificando a evolução interpretativa jurídica e a mudança no tratamento dos direitos da comunidade que é marginalizada há séculos.

É ideia basilar de que todo avanço normativo deve ser precedido de um avanço social, a estrutura social modifica-se para que haja coerência em uma mudança na estrutura normativa de um país. Os avanços são percebidos de forma espaçada e a partir de diferenças socioculturais em todos os países e regionalidades, até porque, ainda hoje, se proíbe em muitos países a relação homoafetiva — nota-se a necessidade de estudar fluxos migratórios em razão da própria impossibilidade de existir enquanto homossexual nesses países. Conforme dados contabilizados de nações membros da ONU, 70 países criminalizam de alguma forma as relações consensuais entre pessoas do mesmo sexo, cujas penas variam entre multas, prisões (inclusive perpétuas) e até a pena de morte, caso de Arábia Saudita, Irã, Iêmen e Sudão.

O Direito emerge como interpretação da realidade observável e como catalisador da evolução normativa e organizacional, a partir dessa concepção há muito a se comemorar com a criminalização da homotransfobia, mas, depois de mais de um ano da criminalização, ainda há muito a ser feito nas esferas jurídicas e sociais quanto à proteção e efetivação dos direitos da comunidade LGBTI+.

Em verdade, não há dados consolidados em termos processuais e jurídicos das reais mudanças a partir da nova interpretação da lei e das novas diretrizes traçadas após o julgamento da ADO: os tribunais não dispõem de dados nesse sentido, uma vez que não foram criadas categorias no CNJ para que se faça o levantamento das ações, a própria busca é impossibilitada pelos mecanismos atualmente existentes.

Enquanto se perdura a maior vitória em âmbito sociológico do que de fato se espelharia em estatísticas e o Brasil permanece como um dos países que mais mata homossexuais no mundo, deve-se pensar na importância dos operadores do Direito e na necessidade destes se posicionarem acerca destas temáticas, dentro dos limites legais, a fim de efetivar a busca pela proteção e efetivação dos direitos humanos da comunidade LGBTI+.

Não há separação entre política e Direito, aplicá-lo, assim sendo, é ato político e daí a necessidade do posicionamento dos operadores do Direito, pressionando os órgãos públicos pelo cumprimento das normas criadas e a adoção de protocolos de cuidados para que as autoridades e forças da segurança pública saibam lidar com denúncias de LGBTIfobia, tendo em vista que não é raro as vítimas sofrerem a revitimização nas próprias delegacias de polícia e, por tal razão, até desistirem da denúncia.

O simples descaso quanto aos direitos das minorias em questão já mostra um posicionamento político: em um país que se mata centenas de homossexuais todos os anos e lidera o ranking mundial de mortes, não apoiar os direitos da comunidade LGBTI+ é ser conivente com a violência que sofrem estes grupos: Não basta, portanto, não ser homofóbico, é necessário ser anti-homofobia.

*Bruno Serafim dos Santos é graduando no curso de Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

*Gabriela de Carvalho Barbosa é graduando no curso de Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Artigo publicado originalmente no portal da revista Consultor Jurídico.

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Foto destaque: confetam.com.br