Líbia sem lei: histórias de refugiados e migrantes

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Médicos Sem Fronteiras

Em 24.03.2021

Bianca Benvenuti, gerente de relações institucionais de MSF para a Líbia, fornece um panorama sobre a situação no país

A Líbia não é um país seguro. Nós ouvimos muito isso. Já foi provado inúmeras vezes. Mesmo assim, ainda acredito que muitas pessoas não entendem o verdadeiro significado disso.

Em dezembro, na época do Natal, a equipe médica de MSF recebeu uma ligação: havia uma mulher na sala de emergência do Hospital Universitário de Trípoli, mas os médicos se recusavam a tratá-la, porque ela não tinha documentos. Nós a levamos para a clínica de referência e a transferimos para a terapia intensiva quase imediatamente. Sua condição era terrível. Ela precisava de diálise, mas MSF não tem uma máquina de diálise e não conseguimos descobrir uma forma de ela conseguir receber esse tratamento no hospital. Depois de alguns dias, ela faleceu. Nunca soubemos de onde ela era ou quem ela era. Não podíamos nem ligar para a família dela para contar que ela havia morrido.

Muitos refugiados e migrantes na Líbia, senão a maioria, não possuem direitos. Eles não podem levar uma vida normal. Se você for atacado por criminosos, não pode ir à polícia, porque eles podem acabar prendendo você. Se o seu empregador decidir não te pagar, não há nada que você possa fazer. Ao voltar do trabalho para casa, cansado e frustrado, você pode ser preso e levado a um centro de detenção.

As histórias de Hasan e Osman

Foi o que aconteceu com Hasan, de 17 anos. Quando o conheci, senti que seus olhos estavam cheios de angústia, mas ele estava olhando para baixo e provavelmente não queria demonstrar.

Hasan, de 17 anos.

“Eu já viajei por muitos lugares na África, mas nunca vi um homem branco ser tratado como os brancos [líbios] tratam os negros aqui na Líbia ou no mar. Comemos no chão, no próprio chão onde dormimos, na mesma sala onde vamos ao banheiro. É nojento. Que pessoa forçaria outra a viver assim?”. Suas mãos estão tão secas que a pele está descascando. Eu pergunto a ele o que aconteceu e ele me diz que é devido ao trabalho manual árduo. Ele veio à Líbia para trabalhar, para enviar dinheiro de volta para casa e ajudar sua família. Infelizmente, muitas vezes no último ano ele trabalhou e não foi pago. Ele me disse que não se sentia seguro nem onde morava. Ele diz que dorme totalmente vestido porque os criminosos vêm roubá-los à noite. Para pessoas como Hasan, a Líbia não tem lei.

Já ouvi histórias semelhantes muitas vezes, especialmente nos bairros de Trípoli, onde refugiados e migrantes tentam levar uma vida normal. Gangues criminosas e milícias visam sistematicamente essas comunidades. Não há muito o que roubar, mas as pessoas costumam nos dizer que você pode ser morto até por causa de um celular. O medo é um sentimento comum. Osman compartilhou isso comigo na primeira vez que o conheci. Ele é um menino com um grande sorriso. Deixou a Somália por causa da guerra. Ele estava procurando um lugar mais seguro e decidiu viajar para a Europa. Mas na noite em que ele esperava para embarcar em um dos barcos que não podiam navegar em Trípoli, a polícia invadiu a casa do contrabandista. Eles perseguiram Osman e ele caiu do primeiro andar do edifício. Desde então, não consegue mais andar. Agora, ele está preso em um prédio abandonado em Gargaresh, em uma pequena sala escura que mais parece uma caverna. “Quando os ladrões chegam, todo mundo foge, mas tudo o que posso fazer é me esconder debaixo dos cobertores, esperando que eles não me vejam.”

Mustapha, 17 anos.

Hasan e Osman, como muitos outros, decidiram cruzar o mar Mediterrâneo. Junto com mais de 15 mil pessoas, em 2020 e 2021, eles foram interceptados pela guarda costeira da Líbia e devolvidos à força para lá, onde muitos foram presos em centros de detenção.

“Por favor, convença os guardas a me deixarem ligar para minha mãe”

A primeira vez que entrei em um centro de detenção de migrantes em Trípoli, vi algo familiar. Uma das paredes do hangar que MSF usa para consultas médicas tinha vários adesivos da Agência Italiana para Cooperação Internacional. Os adesivos diziam: “Aid 11242/01, Rumo à Imigração Sustentável”. Minha colega líbia sorriu (ou pelo menos acho que ela sorriu, estávamos usando máscaras) quando eu disse a ela como me sentia envergonhada por meu dinheiro de contribuinte ter ido parar neste lugar. Mas depois ela ficou mais séria e disse que também se envergonhava de que este sistema de detenção estivesse acontecendo em seu país.

No hangar principal, onde as pessoas são mantidas, a única luz que entra é pelas altas janelas, perto do teto. A maioria delas está quebrada, mas elas estão lá em cima, úteis apenas para deixar entrar o frio e a chuva, em vez de fornecer uma ventilação adequada. Entrei na sala principal com a equipe médica de MSF para distribuir Plumpy’Nut – uma pasta de amendoim com alto teor calórico que normalmente damos às crianças desnutridas. Nós o distribuímos para adultos nos centros de detenção porque sabemos que eles não recebem comida suficiente. Nossas equipes já haviam relatado casos graves de desnutrição em centros de detenção em Trípoli antes. Ao distribuir suplementos nutricionais, esperamos poder evitar mais casos.

Os detentos se agacham em longas filas, seus calcanhares não tocam o chão, suas costas ficam dobradas e seus olhos, voltados para baixo. Há cerca de 150 pessoas na minha frente, mas elas parecem ocupar um espaço tão pequeno.

Migrantes e refugiados em centros de detenção na Líbia.

Ao olhar para essas pessoas, lembro-me de que uma vez alguém me disse que é um gesto muito político olhar um migrante nos olhos. Isso lhes devolve sua humanidade. Naquele momento, acho que ela estava certa.

Muitas das pessoas com quem falei haviam perdido todas as esperanças. Eles se sentiram como se estivessem presos em um ciclo, sem soluções, sem escolhas e sem opções. Eles não podiam ir para casa, não podiam ficar no centro de detenção e serem tratados assim, não podiam ficar na Líbia e não podiam chegar à Europa. Eles tentaram e foram interceptados todas as vezes.

Eu conheci um grupo um dia; eles eram sobreviventes de um naufrágio. Falei com um homem que havia perdido o irmão naquela noite. “Por favor, convença os guardas a me deixarem ligar para minha mãe”, disse ele. “Tenho certeza de que ela pensa que eu também estou morto; eu preciso que ela saiba que eu sobrevivi.”

Testemunhando o sofrimento

Nos meses em que trabalhei na Líbia, me vi repetidamente ponderando as mesmas questões. O que está faltando para as pessoas realmente entenderem o que está acontecendo na Líbia? Esses sofrimentos são tão estranhos para nós? Achamos que a Líbia está tão longe que o que acontece aqui não é da nossa conta?

Já faz tempo que ouço que as pessoas estão cansadas de ouvir histórias da Líbia. Eles chamam isso de “fadiga da compaixão”. Mas você não vai ver esse cansaço na equipe médica de MSF, que, todos os dias, durante anos, vai aos centros de detenção e às comunidades de Trípoli para tentar garantir que as pessoas recebam cuidados. Todos os dias nossos profissionais testemunham o sofrimento de refugiados e migrantes causado pela ilegalidade, pela exploração, pela falta de proteção e pelo acesso limitado aos cuidados de saúde mais básicos.

Durante um dos nossos dias mais difíceis em Trípoli, minha colega ficou muito emocionada e não conseguiu esconder as lágrimas. Ela me disse se desculpando: “Você nunca se acostuma com isso.” Nós não deveríamos.

Foto destaque: Giulio Piscitelli