Das escolas informais no período escravista às redes de apoio em TI
Taís Nascimento*
Em 15.04.2021
Em 2013, a chegada dos primeiros médicos e médicas cubanas do programa Mais Médicos foi acompanhada de vários episódios explícitos de racismo. Uma jornalista do Rio Grande do Norte na época publicou no Facebook: “essas médicas cubanas tem uma cara de empregada doméstica… Será que são médicas mesmo? Médico geralmente tem uma postura, tem cara de médico, se impõe a partir da aparência”. Esse caso em especial me chama atenção porque fala diretamente a nós mulheres negras e do espaço que a sociedade espera que nós ocupemos.
O espaço destinado à mulher negra no imaginário social está sempre ligado ao servir, ao trabalho doméstico, às cozinhas, o que não é uma desonra, mas todos sabemos que só recentemente as empregadas domésticas conseguiram direitos já consagrados há décadas a todas as outras categorias profissionais, de modo que sempre foi uma classe muito ligada ao subemprego ou ao trabalho informal. A imagem da mulher negra não está associada à imagem do sucesso profissional, das profissões mais bem remuneradas e ainda mais longe está das ciências e da tecnologia.
Dito isto, entendo que antes de pensar nós mulheres negras enquanto trabalhadoras da tecnologia é importante refletir sobre nós mulheres negras na sociedade. Ressalto aqui que não sou uma pesquisadora da área e os pontos que trago são apenas reflexões daquilo que leio, vejo, escuto e discuto dentro da necessidade de construir minha própria resistência. Não por acaso, RESISTÊNCIA foi uma das palavras mais ditas por mulheres como eu quando as questionei sobre o que é ser uma mulher negra em TI.
Estamos na intersecção de duas mazelas sociais: o racismo e o machismo que, muito além de estruturas de preconceito, são estruturas violentas de negação de direitos e de limitação de oportunidades – como bem disse Bell Puã, do Slam das Minas PE, “Queria eu, meu Deus, que racismo fosse só ser chamada de branquela”. Enquanto grupo social as mulheres negras compõem o grupo mais vulnerável quando analisamos o acesso à educação, à saúde, à moradia, à renda. As estatísticas são dolorosas e ainda mais dolorosas as estatísticas que analisam as mulheres negras enquanto vítimas de violência sexual, doméstica e obstétrica.
É esse o contexto social que precisamos muitas vezes transpor para alcançar as grandes oportunidades trazidas pelo grande avanço da computação pessoal, da comunicação móvel, da popularização da Internet e posterior expansão da área de TIC. E é nesse contexto também que surgem grupos de pessoas negras que propõem fortalecer e apoiar outras pessoas negras no processo de entrada, permanência e existência dentro desse mercado tão competitivo.
Nossa capacidade de mobilização e o nosso senso de comunidade são ancestrais. São iniciativas de homens e mulheres negras livres que ainda no Brasil escravista criam escolas informais para alfabetizar o nosso povo. O “nós por nós” vem de longe e a educação excludente é projeto político desde sempre. Se de um lado existia uma legislação, um decreto de 1854, que formalmente excluía a população negra do processo educacional e da produção intelectual, havia também resistências em forma de lápis e papel como a escola do professor Cesarino e suas irmãs, em São Paulo, e a escola de Pretextato, no Rio de Janeiro, que alfabetizavam clandestinamente meninas e meninos negros.
Hoje, noutro cenário mas com o mesmo intuito que é o de diminuir o impacto do não acesso, da não inclusão, da não oportunidade, da não eqüidade e todos os nãos que são dados à população negra, surgem potentes iniciativas de inclusão de pessoas negras e por mais diversidade na área de TI. Rapidamente lembro e cito quase uma dezena delas: PretaLab, AfroPyton, PretUX, UX para Minas Pretas, TecnoGueto, AfrOya Tech Hub. E se multiplicam.
Somando essas iniciativas a quase uma década da aprovação das cotas raciais nas universidades, o cenário do mercado de tecnologia vem mudando e é incrível ver essa mudança (lenta). Passando por diferentes funções, mas atuando quase sempre como designer, fazem quase duas décadas que trabalhar com tecnologia é o meu ganha-pão, o meu ofício, e durante a maior parte desse tempo, eu fui a única mulher negra na universidade, no estágio, no emprego e também nos eventos profissionais e acadêmicos.
Ocupar a tecnologia é também político. É nesse espaço, recheado de termos em inglês, onde surgem novos modelos de negócios, novas relações sociais, de trabalho e também de exploração, e onde são tomadas grandes decisões do nosso tempo. É mais que importante, é urgente que nós pessoas negras estejamos à frente também desse processo e possamos construir a inovação que queremos ver no mundo, uma inovação que nos inclua.