Amanse as palavras ou, faça do bicho-papão uma brincadeira
Alcivam Paulo de Oliveira*
Em 15.04.2021
Quando eu era criança, lá em Peixinhos, morria de medo de carucho, o cachorro de Wiliams. Dobrava a esquina da Rua Caruaru rezando baixinho para São Roque… A reza não dava certo. Se ele estivesse no portão, pressentia minha vinda e já se preparava para acuar-me… Queria amansá-lo para não ter medo. Ou quem sabe, apenas ignorá-lo.
Assim são as palavras, elas podem nos meter medo e nossas reações podem ser exatamente iguais: usar a fé para exorcizá-las: vá de retro luta de classes! Fugir delas, torcendo para que elas não nos persigam: não me venha com ideologias! Ou, quem sabe, simplesmente ignorá-las: isso é política e política como futebol…!
Nos tempos em que o significado das palavras era escondido em dicionários caros e enciclopédias mais caras ainda, amansar palavra era coisa para quem passava do colegial e isso era para poucos, afinal, havia escola gratuita do estado, eram escolas estatais mas não havia vagas pra todo mundo, e assim não eram públicas. Nos tempos do Doutor Google a situação é um pouco diferente… Temos um chicote e uma cadeira para enfrentarmos as feras. Nos falta usá-los corretamente…
Para usá-los é preciso ferramentas, mas antes das ferramentas, é preciso a vontade e a determinação de querer amansar as palavras, torná-las afáveis, fazer delas pontes, que nos levam para todos os lados do rio… destruí-las em sua forma de muros, aqueles muros que nos fazem forçadamente gostar do lado que estamos.
Amansar palavras é dar sentido a elas, fazê-las parte de nosso mundo: sim dona palavra, pode entrar em minha casa, sei que você não morde e nem vai me atacar. Aqui tem um lugar para você sentar. De hoje em diante, vou levá-la na minha bagagem e você se tornará minha… E você me ajudará a me comunicar com o mundo.
Engraçado, porque o mundo entra em nós pelos sete buracos de nossa cabeça e ainda entra por meio da pele. É muita entrada para que tudo se processe no cérebro por impulsos elétricos, gerando memória e esquemas para que, quando aquele cheiro, aquela imagem, aquele gosto, aquele som ou a sensação de calor ou frio, de macio ou áspero retorne um dia, saibamos interpretá-la. E ao sabermos, inexoravelmente (essa é mansa?) possamos doar para outros humanos o que aprendemos. E aí vem a palavra. É verdade que há outras linguagens: as artes, os movimentos do corpo ou os números também servem para mostrar algo (coisa ou relação, atitude ou sentimento) quando este algo não está presente. Mas a palavra… Ah, a palavra. Ela é mágica! Basta um conjunto de sons e fonemas e logo o outro começa a ver em sua cabeça o que estamos mostrando… É como uma brincadeira, como diz o poeta José Paulo Paes:
Convite
Poesia é… brincar com as palavras
como se brinca com bola,
papagaio, pião.
como se brinca com bola,
papagaio, pião.
Só que bola, papagaio, pião
de tanto brincar se gastam.
de tanto brincar se gastam.
As palavras não:
Quanto mais se brinca com elas,
mais novas ficam.
Quanto mais se brinca com elas,
mais novas ficam.
Como a água do rio
que é água sempre nova.
que é água sempre nova.
Como cada dia que é sempre um novo dia.
*Alcivam Paulo de Oliveira é professor.
Amei o texto do professor Alcivam, leve, gostoso de ler e muito instrutivo. Parabéns.
Agradeço suas palavras Izabel.