Enquanto houver racismo, não haverá democracia

Por

Camila Moura de Carvalho*

Em 01.07.2021

“A explosão não vai acontecer hoje. Ainda é muito cedo, ou tarde demais.”

(Frantz Fanon).

O nome desse artigo alude a uma frase por muitos de nós já ouvida e que foi lançada em manifesto de 14 de julho do ano passado pelas organizações Coalizão Negra Por Direitos, Coletivo Legítima Defesa, além de outras mais de 150 organizações do movimento negro, de mulheres negras, pessoas faveladas, periféricas, LGBTQIA+, povos do campo, das águas e das florestas, trabalhadores explorados, informais e desempregados.

O manifesto, já no contexto pandêmico da Covid-19, pretendeu chamar à atenção de setores democráticos da sociedade brasileira, de instituições e de pessoas que se afirmam antirracistas, exigindo coerência e convocando-as a ações práticas com o objetivo de erradicar “o racismo como prática genocida contra a população negra” e outras minorias, visando à construção de uma nova democracia.

Naquela quadra histórica, George Floyd já havia sido assassinado nos EUA e aqui, João Alberto viria a ser espancado até a morte em um espetáculo de horror em uma loja da rede de supermercados Carrefour em Porto Alegre/RS. A morte de Beto, como era conhecido por muitos, ocorreu no dia anterior ao que se celebra o dia da consciência negra.

Hoje, quase um ano após esses dois episódios que se tornaram um ponto de inflexão nos movimentos antirracistas do hemisfério norte ao sul, outros tantos crimes bárbaros contra nossos irmãos e irmãs negras se seguiram e seguem, como constatamos nas notícias diárias.

De outro lado, o chamado “novo normal” que a pandemia da Covid-19 inaugurou na vida da parcela privilegiada da sociedade, composta predominantemente por pessoas brancas e de classe média, atingiu as pessoas pretas, pobres e periféricas na forma do que se pode chamar de “velho normal muito piorado”.

O estudo produzido pelo grupo Alerta e apresentado pela diretora-executiva da Anistia Internacional, Dra Jurema Werneck, na CPI da Covid no último dia 24, apontou que cerca de 120 mil mortes poderiam ter sido evitadas no 1º ano da pandemia no Brasil, caso uma política efetiva de controle baseada em ações não farmacológicas tivesse sido implementada.

O trabalho revelou ainda que o risco de morte não foi igual para todas e todos, evidenciando que pessoas com renda superior a quatro salários-mínimos consumiram quatro vezes mais testes do que pessoas que receberam menos de meio salário-mínimo. Apontou também que as desigualdades estruturais influenciaram as altas taxas de mortalidade de pessoas negras, indígenas, com baixa renda e baixa escolaridade, grupos estes que contaram majoritariamente com atendimento do Sistema Único de Saúde.

O aumento vertiginoso do desemprego; a superexploração de trabalhadores formais de baixa remuneração e de informais; a escalada da violência doméstica contra as mulheres negras; o colapso dos serviços públicos de saúde; todo esse estado de coisas são efeitos de uma deficiência estatal e que foram potencializados pela pandemia.

Moradores das comunidades periféricas, por exemplo, hoje vivem um misto de estado de sítio permanente com estado de exceção, mesmo com a limitação imposta às operações policiais pela liminar do STF.

Para além dessa percepção e antes de tudo, porém, é preciso reconhecer que esse contexto social dramático que atravessamos atualmente, é parte de um projeto estabelecido de país que possui em seu cerne o racismo e a desigualdade e, dessa forma, pretende perpetuá-los e agudizá-los à medida em que avança com suas ações políticas e econômicas.

Como nos ensina Sueli Carneiro apoiada em Boaventura Sousa Santos: “ se o racismo é elemento estrutural da sociedade brasileira ele é, portanto, um dos pilares fundamentais da democracia de baixa intensidade a que nos acostumamos como normalidade democrática e cujo ônus pagamos nós negras e negros brasileiros. E é esse normal que precisa ser desafiado e abandonado” (Mesa Feminismos Negros, Jornadas Antirracistas, promovida pela Companhia das Letras em 25/07/2020).

O avanço dessas ações políticas e econômicas, já nos estertores do estado neoliberal, em muito se relaciona com o conceito de necropolítica desenvolvido pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, que nos explica como e porque o controle da vida e morte de certos corpos passa a ser a tônica dessa nova etapa do capitalismo.

Sílvio Almeida ao analisar referido conceito aponta bem sua articulação com o neoliberalismo e com os efeitos do chamado pós-fordismo sobre a economia, sobre o imaginário social e sobre todas as consequências políticas, econômicas e sociais que advieram do fim do Estado de bem-estar social.

O modelo neoliberal, nesse sentido, é um modelo econômico degradador que se apropria de certas categorias sociais e do meio ambiente de acordo com seus interesses, operando sob a lógica da superexploração, segregação, exclusão e morte.

Cabe apontar que o fenômeno da morte, no que se refere aos sujeitos, assume dimensões para além do aspecto biológico; apresenta-se também sob a forma de interdições, de impossibilidades várias de realização da vida material concreta, incapacitando e silenciando nos corpos a possibilidade imanente do movimento da vida. A anulação, enfim, é a oferta do estado neoliberal a certos sujeitos tais como as pessoas negras, indígenas, LGBTQIA+ etc. Este é o cenário degradante a que assistimos atualmente e que se acentua mais e mais.

O racismo, da mesma forma que compõe a lógica do estado neoliberal também opera livremente nas tramas institucionais. No campo do direito, por exemplo, sobretudo no sistema de justiça e da segurança pública, atua como instrumento de legitimação da morte e a difusão ideológica de sua naturalização é a sua estrutura de propagação. Por isso já não nos causa mais espanto a morte de pessoas em favelas.

É como diz Emicida na canção “Ismália”: “… Porque um corpo preto morto é tipo os hit das parada. Todo mundo vê, mas essa porra não diz nada. Olhei no espelho, Ícaro me encarou. Cuidado, não voa tão perto do Sol. Eles num guenta te ver livre, imagina te ver rei…”

Resta-nos perguntar: a quem interessa a vida e morte de certos sujeitos no estado neoliberal?

O momento atual nos convoca, pois, não só a sermos antirracistas e feministas, mas também a nos organizarmos politicamente para conter a escalada do neofascismo. O único remédio para isso é a defesa intransigente da democracia.

É urgente que nós, pessoas negras, deixemos de ser mortas (por ação ou omissão do Estado) “apenas” pelo fato de sermos pessoas negras.

Para além de falar de diversidade e inclusão, é urgente discutirmos sobre esse estado de coisas em conjunto com a branquitude privilegiada, mas crítica de sua posição. Precisamos conversar com franqueza sobre as heranças deixadas às pessoas que descendem de escravizados e às que descendem dos escravizadores nesse país.

É necessário esse acerto de contas e por isso, antes de falar de inclusão, é preciso falar de igualdade, da efetiva participação de pessoas negras e dos grupos minorizados (sustentadas por uma agenda política coerente) nas arenas de disputa e de discussão sobre a (re) construção do ambiente democrático e de novos projetos de Brasil.

A negritude deve pautar sua agenda a partir da sua própria perspectiva, ou como nos ensina Molefi Keti Asante: da sua afrocentricidade e não da perspectiva da branquitude hegemônica, ainda que esta seja do campo progressista.

O antirracismo, assim, assume uma feição de prática política e de postura ética que nos desafia a constituir juntos uma nova sociabilidade onde prevaleça a colaboração no lugar da competição; em que a ideia do ganha-perde e da lógica do inimigo deem lugar à solidariedade; quando mesmo diante de conflitos e opiniões divergentes possamos conviver e encontrar alternativas coletivas e colaborativas; onde, enfim, haja espaço para diferentes cosmovisões e possamos construir uma futuridade sustentável.

É isso que significa meu sankofa recém-tatuado no braço, bem como o que nos ensina novamente Carneiro:  “nossos passos vem de longe e também é de longe a indignação que nos impulsiona. O que nos move a denunciar e escrever diante da injustiça e da indignação que nós pessoas negras experimentamos nessa sociedade e contra as quais temos que estar sempre alertas e sempre em legítima defesa. É essa indignação que reafirma nossa humanidade”

Esse é o nosso novo normal a ser perseguido e não desejo, não espero e não luto por nada menos para mim, minhas irmãs e irmãos do que o tornar-se uma pessoa plena de possibilidades e oportunidades para além das condições de raça, gênero ou de orientação sexual.

*Camila Moura de Carvalho, Juíza do Trabalho do TRT-15 e membra da Associação de Juízes pela Democracia (AJD).

Artigo publicado originalmente no portal Justificando.

Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.

Foto destaque: Agência Senado