Por que o governo federal está ameaçando o direito a assistência religiosa nas prisões?
Natália Martino, Ana Beraldo e Thais Lemos Duarte*
Em 27.07.2021
Diferentemente do que se pode imaginar, as prisões não são instituições inteiramente separadas do restante da sociedade, embora sejam pouco transparentes ao controle social. Existem permeabilidades importantes nos muros que separam o lado interior do lado exterior das penitenciárias. Todos os dias, alimentos e medicamentos, afetos entre familiares e pessoas privadas de liberdade, agentes, advogados, enfermeiros, organizações de Direitos Humanos e coletivos religiosos atravessam essas fronteiras e estabelecem contatos entre o mundo prisional e a sociedade que o circunda.
Na coluna desta semana, vamos tratar especificamente de um desses grupos que se movimentam entre o dentro e o fora das prisões: os religiosos. No Brasil, como em muitas outras partes do mundo, grupos de cunho religioso têm uma histórica atuação nos espaços carcerários, oferecendo não apenas auxílio religioso às pessoas privadas de liberdade, mas também apoio assistencial, além de vigilância social sobre os espaços prisionais e suas (também históricas) violações de direitos. Mas pode ser que essa longa e consolidada tradição em breve encontre seu fim.
Em abril deste ano, a Pastoral Carcerária (entidade ligada à Igreja Católica que há muito realiza visitas periódicas aos custodiados em prisões de todo o país) divulgou um ofício encaminhado ao Departamento Penitenciário Nacional (Depen), tornando público um debate até então restrito aos “bastidores” do sistema prisional. Com base neste documento, foi divulgado que o Depen queria proibir as visitas de representantes religiosos às prisões e prestar a assistência religiosa por meio da projeção de áudios em uma espécie de rádio ecumênica.
Com vistas a colocar tal projeto em prática, o órgão do governo federal, então, consultou a Pastoral Carcerária e provavelmente outras entidades que prestam esse tipo de assistência no sistema penitenciário. O Depen tampouco quaisquer outras entidades tornaram pública a proposta de mudança no modo como a assistência religiosa é prestada nas prisões. Então, tudo o que sabemos sobre o tema é o que a Pastoral citou em sua resposta ao governo federal.
Segundo tal entidade, o Depen argumentou que “esta ferramenta (a rádio) multiplicaria em diversas vezes o número de pessoas assistidas por suas instituições religiosas em comparação com a limitada quantidade de pessoas participantes durante a visita física de um líder religioso, geralmente nos pátios”. A Pastoral se posicionou contrariamente à proposta ao reivindicar a legislação em vigor e ao salientar a importância da interação para uma adequada assistência religiosa.
No fim de junho, a Pastoral divulgou ainda uma carta aberta com a assinatura de 862 pessoas, entre bispos e representantes de entidades da sociedade civil nacionais e internacionais, em defesa da manutenção das visitas presenciais de grupos religiosos às prisões. Mas, afinal, o que está em jogo nessa disputa? O imbróglio é mais complexo do que pode parecer: abarca debates sobre espiritualidade, direitos das pessoas privadas de liberdade, prevenção à tortura, laicidade do Estado, infraestrutura prisional e pluralidade de crenças.
Assistência religiosa nas prisões: o que a lei diz sobre isso?
Em primeiro lugar, é bom salientar que as visitas religiosas nos cárceres não são uma peculiaridade brasileira e fazem parte das Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos (Regras de Nelson Mandela), da Organização das Nações Unidas (ONU). Esse documento, do qual o Brasil é signatário, diz que “o direito de entrar em contato com um representante qualificado da sua religião nunca deve ser negado a qualquer recluso”. No Brasil, tal direito também está previsto na Constituição Federal, que estabelece em seu inciso VII do art. 5º que “é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva”.
Na legislação infraconstitucional, incluindo normativas e regulamentos dos órgãos da Justiça, esse direito à assistência religiosa é constantemente reafirmado. A Lei de Execução Penal (LEP), por exemplo, diz no artigo 24: “A assistência religiosa, com liberdade de culto, será prestada aos presos e aos internados, permitindo-se-lhes a participação nos serviços organizados no estabelecimento penal, bem como a posse de livros de instrução religiosa”. Esse mesmo dispositivo estabelece que as unidades prisionais precisam ter espaços para a realização de cultos religiosos, deixando claro que a assistência prevista se consolida através de encontros presenciais. Na lei, há ainda a delimitação de que nenhum dos presos pode ser obrigado a participar de atividades religiosas, na tentativa de manter, por um lado, a liberdade de culto e, por outro, a laicidade do Estado, além de garantir a liberdade individual da pessoa privada de liberdade.
A precariedade das prisões e a fiscalização feita por grupos religiosos
Se, na lei, a assistência religiosa é tida como um direito das pessoas privadas de liberdade por possibilitar o acesso à vivência espiritual-religiosa; na prática, a atuação de grupos religiosos assume também outras funções. A sociologia e a antropologia da religião têm destacado que a religiosidade está, em geral, atrelada a uma promessa de salvação e que, por isso, especialmente para quem se vê em situações de agravada vulnerabilidade, a religião pode atuar como um suporte importante na lida com dificuldades profundas.
Não é por acaso, então, que grupos religiosos (principalmente, no caso brasileiro, os católicos e os evangélicos) se inserem com relativa facilidade em territórios habitados por setores da sociedade marginalizados, como os compostos por moradores de periferia, pela população de rua, por usuários de drogas ou por pessoas encarceradas. Esses sujeitos frequentemente encontram refúgio na religião e nas igrejas. É interessante notar que isso não se dá apenas em um nível “transcendental” ou “espiritual”. Para muita gente, os ambientes centrados na sociabilidade religiosa configuram uns dos poucos espaços seguros nos quais se pode relaxar, pelo menos momentaneamente, da constante possibilidade de ser vítima de violência, por exemplo.
Nas prisões, os atores religiosos, com suas interações constantes e profundas com os custodiados, bem como com suas conexões com outros atores e organismos do “lado de fora”, somam-se ainda a outros grupos para atuar na fiscalização das unidades. Ou seja, em conjunto com agentes com competência de controle externo do cárcere, os grupos religiosos muitas vezes fazem diagnósticos e denúncias de dinâmicas violentas que acabam por conformar a vida intramuros, tal como indicado pela Pastoral Carcerária em seus relatórios sobre “Tortura nos tempos de encarceramento em massa”.
É comum que os órgãos estatais procurem burlar toda forma de controle sobre as unidades prisionais, seja retirando a autonomia de atuação de determinados atores, como o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, seja impedindo que órgãos desse tipo exerçam algumas de suas prerrogativas, como conversar reservadamente com uma pessoa privada de liberdade, sob a alegação da “segurança”. Nesse contexto, não seria exagero sugerir que uma das investidas estatais para impedir essa tarefa de controle seria o fim da assistência religiosa presencial. Isso porque, em resumo, qualquer grupo ou indivíduo externo à administração penitenciária que consiga acessar seus espaços é potencialmente um elemento fiscalizador desse cotidiano que os agentes estatais se esforçam para manter escondido.
Proibir a entrada de religiosos, como pretende o DEPEN, é, portanto, uma proposta que ameaça tornar ainda mais opaco o sistema penitenciário e isso não é desejável. Para além de lutar para que tal proposta não avance, é imprescindível pressionar para que medidas na direção oposta sejam tomadas, com a ampliação do nível de transparência das prisões por meio do aumento de acesso de grupos da sociedade civil aos espaços carcerários.
O imbricamento entre Estado e entidades religiosas nas prisões
A Lei de Execução Penal, em seu Artigo 3º, diz que “ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”. Ou seja, em hipótese alguma o direito à vida, à saúde e, entre outros, à assistência religiosa devem ser suspensos em razão da privação de liberdade decretada pelo juiz. Entretanto, não é novidade que os cárceres brasileiros, marcados por diversos problemas como a superlotação e a insalubridade, são cenários onde as violações de direitos se perpetuam a cada dia. O Estado ora as produz de modo direto, ao usar a força de modo desmedido contra o custodiado, por exemplo; ora as incita indiretamente, por omissão, deixando de fazer algo de sua competência como prestar atendimento médico.
De um modo ou de outro, algumas práticas estatais podem ser lidas como torturantes, pois produzem vidas atravessadas pela violência (pensando uma noção mais elástica da tortura, conforme discutido em textos já publicados na Coluna Por Elas). Nesse contexto, omissões e ações estatais implicam em um abalo da laicidade deste mesmo Estado, uma vez que acabam por atribuir às instituições religiosas (fora outros atores, como as famílias dos presos), a responsabilidade pela garantia de determinados direitos no ambiente prisional. Ainda que haja muitas outras, vamos expor aqui apenas quatro garantias que, juntas, são suficientes para sustentar nosso argumento.
1- Direito à segurança. Seja por disputas travadas entre os presos, seja pela violência estatal direta (como nos casos de uso excessivo da força), a segurança é direito em falta na maioria das unidades prisionais. É necessário, como dizem muitos dos presos com quem conversamos em nossos trabalhos de campo, “dormir sempre com um olho aberto”.
Nesse sentido, unir-se a determinados atores no cárcere pode ser essencial para se manter protegido durante a privação de liberdade. A depender do contexto, essa vinculação pode ocorrer via adesão a um grupo criminal, via cooperação com a administração prisional para que se consiga transitar por celas consideradas mais seguras, ou via aproximação com grupos religiosos, por exemplo.
A pesquisadora Camila Dias estudou a relação entre religiosos e presos em penitenciárias paulistas dominadas pelo coletivo criminal Primeiro Comando da Capital (PCC). Nesses estabelecimentos, há pavilhões ou celas destinados apenas aos “evangélicos” que, embora em geral identificados desse modo genérico, conformam uma grande variedade de siglas. Ir para locais assim implica em certa proteção contra o coletivo criminoso atuante na unidade.
No entanto, se a mudança para o pavilhão evangélico ocorrer depois de desavenças com membros do coletivo ou em uma tentativa de se desligar do grupo criminal, a vigilância sobre a conduta do “novo evangélico” será ferrenha e vai se prolongar até depois do fim da pena. Ser evangélico no cárcere significa não poder se engajar em nenhuma conduta “mundana”, sob o risco de ser considerado um “falso crente” e, assim, ser submetido às retaliações das quais se escapou por causa da conversão religiosa.
2- Direito à assistência social. É consenso entre atores com atuação nas prisões do país que o Estado não provê o mínimo necessário à subsistência das pessoas custodiadas: faltam alimentos e itens de higiene, faltam remédios, roupas de frio e colchões. Às mulheres, ainda faltam, por exemplo, absorventes menstruais e roupas para os bebês que ficam com elas nos primeiros meses de vida. Isso sem contar as famílias do lado de fora que, em sua maioria, perdem a maior parte do seu sustento ao terem um de seus membros preso.
Como o Estado não provê itens básicos de sobrevivência ao custodiado, alguém tem que fazê-lo. É aí que entram os parentes, os coletivos criminais, os movimentos sociais e, claro, as entidades religiosas. Em geral, todos eles, ao mesmo tempo, se relacionam em um emaranhado de assistência informal coordenado pelo Estado. Sim, porque o Estado está lá, não apenas decidindo qual é o “kit de sobrevivência” dado a cada pessoa privada de liberdade (e assim criando as necessidades a serem supridas), mas também filtrando o que, como e quando qualquer objeto ou pessoa pode entrar nas unidades prisionais.
3- Direito à assistência jurídica. A Constituição Federal de 1988 criou um órgão específico para a provisão gratuita de assistência jurídica em todos os âmbitos do Direito: a Defensoria Pública. Contudo, muitos estados não investiram devidamente na estruturação dessas instituições, de modo que o crescimento exponencial da população encarcerada, vivenciado nas últimas décadas, não foi acompanhado de uma maior robustez do aparato público que deveria fornecer os serviços jurídicos e de defesa para essa população. Os déficits são cada vez mais significativos e esses órgãos estaduais ficam sobremaneira distantes de atender adequadamente a todos.
Entre os muitos resultados dessa situação estão, por exemplo, as altas taxas de presos provisórios (sem julgamento) e a recorrência de pessoas que, mesmo já tendo cumprido suas penas, continuam cerceadas de sua liberdade. Mas há também outro resultado, menos visível, mas não menos importante. De novo, a fragilidade assistencial do Estado faz emergir outros grupos – de coletivos criminais até atores religiosos – que passam a suprir essas necessidades básicas.
Rafael Godoi narra em sua tese a ansiedade que se espalha entre os presos no momento em que a Pastoral Carcerária chega a um cárcere paulista com informações processuais de todos aqueles que as solicitaram numa visita anterior da entidade. O que está em jogo é o desejo (aparentemente básico) de se saber o que a Justiça está decidindo sobre o seu destino. Há casos, inclusive, de presos que não sabem os motivos pelos quais foram parar no ambiente carcerário.
4- Direito à saúde (principalmente a mental). Como a pandemia da Covid-19 deixou claro, as pessoas privadas de liberdade têm pouco acesso a serviços de saúde. Um dos aspectos talvez menos debatidos, mas certamente de importância fundamental, é a saúde mental dos sujeitos encarcerados. A condição de cerceamento da liberdade, a inadequação de condições básicas de higiene, a privação de sono, as violências vivenciadas nas prisões – além das frequentes histórias de vida anteriores à reclusão permeadas por marginalização, abusos e vulnerabilidade – conformam um cenário propício ao desenvolvimento ou agravamento de transtornos psíquicos.
Estudos realizados em diversas partes do mundo apontam para uma incidência de casos de depressão, ansiedade e ideação suicida entre pessoas custodiadas muito superior à média na população total. No Brasil, os suicídios são quatro vezes mais comuns nas cadeias do que na sociedade em geral. Entre as mulheres, a taxa de autoextermínio de encarceradas é 20 vezes maior do que a média nacional. A situação é tão grave que o adoecimento mental vem sendo entendido como uma das grandes consequências das políticas de encarceramento. Porém, apesar de sua frequência, pessoas presas que apresentam sintomas desse tipo de adoecimento no interior do sistema carcerário não costumam receber tratamento adequado, estando, muitas vezes, desassistidas e, outras tantas, supermedicalizadas.
Os trabalhos desenvolvidos por grupos religiosos são comumente tidos como auxílios valiosos na lida dessas questões. Não é raro que os únicos programas disponíveis para endereçar questões como o uso de drogas nas unidades prisionais, por exemplo, sejam aqueles conduzidos pelos grupos religiosos.
Logo, a atuação estatal – muitas vezes injusta, violenta ou insuficiente – acaba por alimentar a importância dos grupos religiosos dentro das prisões. Se o sistema carcerário não fornece o mínimo necessário à sobrevivência intramuros, as organizações religiosas doam alimentos e remédios; se os agentes estatais agridem os presos, as organizações religiosas denunciam esta prática; se os presos se veem com pouco acesso à justiça, a religiosidade oferece assistência jurídica.
Esses exemplos não esgotam as situações nas quais Estado e igrejas se misturam no cotidiano prisional, mas são capazes de apresentar o cenário que aqui nos importa: ao administrar a falta de tudo e coordenar a garantia de bens, de serviços e pessoas nos espaços prisionais, o Estado acaba por ser aquele que autoriza ou que pactua com o provimento dessa assistência por religiosos.
Direito não é caridade
A discussão até aqui nos permite, então, tirar pelo menos três conclusões. A primeira, mais direta, é central na argumentação da Pastoral Carcerária contra a proposta do DEPEN de acabar com as visitas religiosas nas prisões: a assistência religiosa é um direito em si e só pode se efetivar por meio da presença desses grupos nos espaços prisionais. A segunda é de extrema relevância para qualquer debate político que vise reduzir as violações de direitos nos sistemas penitenciários: a presença de atores externos nas prisões deve ser facilitada sempre, por garantir maior nível de transparência desses espaços.
Por fim, a terceira é que a ação desses grupos religiosos ajuda a suprir omissões assistenciais na atuação do Estado e, portanto, é de grande valia para melhorar as condições de encarceramento. Entretanto, mantemos um posicionamento crítico de que essa ação deveria ser tarefa estatal, não de outras entidades externas ao cárcere, como as de cunho religioso. Por isso, devem ser lidas como algo emergencial, mobilizadas em face das dinâmicas de precarização extrema existentes nas prisões do país – dinâmicas essas que não podem ser naturalizadas diante da sua mitigação via atores externos (como os religiosos).
Que vençamos a batalha pela manutenção das visitas religiosas nas prisões, mas que lutemos também para que os direitos sejam adequadamente providos a todos.
*Natália Martino, Ana Beraldo e Thais Lemos Duarte são pesquisadoras do CRISP da Universidade Federal de Minas Gerais.
Artigo publicado originalmente no portal Justificando.
Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
Foto destaque: Arquidiocese de Olinda e Recife – Arcebispo Dom Fernando Saburido em visita a presídio.