Terceira via: as lições de Bobbio para o Brasil
Jorge Felix*
Em 03.02.2022
Desde a eleição presidencial de 1994, o tema da chamada “terceira via” estava ausente do debate político eleitoral no País. Naquele ano, o mainstream da economia e da política procurava por uma alternativa entre Paulo Maluf, então prefeito de São Paulo (à época no PPB, antigo PDS), e Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Em outubro de 1993, sentado em um dos sofás de seu apartamento em Brasília, o então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, ao lado do amigo Sérgio Motta e do então presidente do PSDB, Tasso Jereissati, ouvia Antônio Carlos Lavareda, então guru do partido quando o assunto era pesquisas de intenção de votos. Avaliavam o sonho de o sociólogo, aparentemente sem nenhuma sustentação na conjuntura, candidatar-se a presidente.Os números enterraram o sonho de Tasso, com apenas 2% nas pesquisas, sendo que 60% do eleitorado jamais havia ouvido falar o nome dele. Esse quadro, no entanto, impedia qualquer comemoração do sociólogo dentro da acirrada disputa interna no PSDB. FHC estava em situação tecnicamente empatada com Tasso. Quanto mais Lavareda falava e explicava seu monte de números, FHC arregalava os olhos, disfarçadamente, para Serjão, que o conhecia bem a ponto de entendê-lo pelo olhar: “Vamos pular fora dessa o mais rápido possível”. Não decidiram de pronto.
A opção para a chamada “terceira via” passou a ser o então ministro da Previdência Social, Antônio Britto. Era o que estava em melhor situação nas planilhas de Lavareda: 15%. O motivo era sua imagem simpática com o eleitorado idoso ou aposentado. Britto havia reduzido as filas do INSS. Jornalista e ex-repórter da Rede Globo, era popular. Seu recall em parte do eleitorado ainda era o do porta-voz de Tancredo Neves, que esteve ao lado da nação naqueles 38 dias de martírio em 1985. Mas os números sinalizavam que a construção da “terceira via” passava pela questão da Seguridade Social, de uma gestão e de uma discussão sobre esse “seguro coletivo”, ou seja, da coesão social. Em outras palavras, pela capacidade de dar respostas às tormentas do dia a dia da população.
A menos de um mês para o prazo de definição do candidato, noutra reunião, na casa do então deputado tucano Sérgio Machado (CE), FHC chegou a dizer: “Tem dois candidatos, eu e o Britto. Topo o ministério se o Britto aceitar ser candidato”. Naquele momento, a aprovação do Fundo Social de Emergência (FSE, anos mais tarde FEF, Fundo de Estabilização Fiscal, e depois Desvinculação das Receitas da União, DRU), base orçamentária para a execução do Plano Real, tinha chances mínimas de obter dois terços das duas casas legislativas. O programa econômico com a cara da candidatura presidencial tinha a oposição de todos os pré-candidatos. FHC disse que permaneceria no governo para aprovar o Real e Britto, surpreendendo a todos, preferiu fugir da briga com o correligionário Orestes Quércia, e disputar o governo do Rio Grande do Sul. Em poucos meses, FHC estava devidamente incorporado nesse papel com o Plano Real, o FSE foi aprovado, retirando recursos da Seguridade Social, no entanto, abrindo caminho para a estabilidade monetária. A história, todo mundo conhece, fez do próprio FHC o eleito, livrando o PSDB do apoio a Lula ou à ala antiquercista do PMDB, as alternativas possíveis. FHC acabou sendo a “terceira via” – coisa que nunca mais se ouvira falar até esse ano*.
A lembrança de 1994 é necessária para a discussão de tema tão presente na literatura das ciências sociais e, nesse momento, tão levianamente citada por políticos e pela imprensa como se a construção de uma “terceira via” fizesse parte do cardápio ou da vontade de um grupo de filiados a essa ou àquela legenda. Nenhum outro tema em ciência política é mais complexo do que a tal da “terceira via”, pois ela – e é isso que geralmente se ignora – é a própria construção da paz. Sua emergência requer a postura do magistrado mais ilibado e a capacidade de se desenhar perspectivas concretas em favor do bem-estar coletivo. É uma tarefa das mais complexas e, no debate atual, está fulanizada ou vulgarizada, daí suas chances mínimas de ser bem-sucedida.
É preciso retornar a Norberto Bobbio (1909-2004) para compreender suas nuances. Bobbio tratou diretamente do tema em duas conferências. A primeira sob o título O terceiro ausente, em 30 de dezembro de 1983, e a segunda sob o título O terceiro na política, em 22 de agosto de 1981. As duas diziam respeito mais à Guerra Fria e ao risco de um conflito atômico entre União Soviética e Estados Unidos. O filósofo italiano começa com o diagnóstico do momento: “A humanidade encontra-se pela primeira vez na sua história em uma situação-limite, além da qual poderia ocorrer uma catástrofe sem precedentes. (…) Todos estão convencidos de que é preciso urgentemente fazer alguma coisa. Mas ninguém sabe exatamente o quê”. E resume a situação da época com uma frase que hoje cabe àqueles interessados na “terceira via” brasileira: “Quem os detém, quem os deterá?”. Bobbio constata que uma vez que a paz só é estabelecida com a vitória de um dos lados ou a intervenção de um “terceiro”, enquanto esse estivesse ausente, o quadro da geopolítica permaneceria o mesmo. Bobbio, mais tarde, identificaria vários terceiros que puseram fim à Guerra Fria.
No segundo texto, Bobbio é mais explícito e talvez essa sua lição sirva mais aos contendores de Jair Bolsonaro e de Lula. O que faz o “terceiro” de fato ser identificado como “terceiro”, ensina ele com base na Sociologia do Conflito de George Simmel (1858-1918), é uma postura equidistante, acima e legítima em relação aos dois polos. Talvez essa seja a maior deficiência daqueles que postulam esse papel na eleição do ano que vem. Por enquanto, de acordo com Bobbio, estamos no estágio de “terceiro ausente” e esse cenário alimenta o “estado polêmico”. Os postulantes a terceiro certamente seriam identificados por Bobbio como “casos graves de crise de legitimidade” ou, como ele denomina, “terceiro aparente” – aquele que na postura ou nas propostas “se enfileira ao lado de um ou outro dos concorrentes”.
No primeiro debate entre os pré-candidatos do PSDB à presidência, os dois principais contendores fizeram mea-culpa por apoiarem e votarem em Bolsonaro em 2018. Outro pretendente é apontado como parcial pelo Supremo Tribunal Federal. E outro carece de equidistância histórica do polo oposto. Esse histórico – e Bobbio destaca que o passado importa na cristalização do terceiro – distancia a pretensão do “neutro” da imagem do que ele realmente é: “terceiro passivo e frágil”.
O primeiro passo para a construção do terceiro, ensina Bobbio, é assumir a condição de “mediador”, aquele que se coloca “entre”, e aqui justifica-se ter contado a história de 1994. FHC dialogou com o PT e com o PMDB e, até mesmo, com a direita a ponto de coligar-se com o PFL. Bobbio afirma que, mesmo falida a missão de quebrar a lógica diádica, o candidato a terceiro precisa antes demonstrar o esforço de equilibrar os dois lados.
A “terceira via” nesse período pré-eleitoral, sempre seguindo Bobbio, remete ao que o filósofo classifica de “tertius gaudens” – aquele que, totalmente diferente do neutro, aparenta [ao eleitorado] “querer tirar vantagem do conflito” entre os dois polos, ou “tertius dolens” – aquele que sofreu alguma desvantagem com o estabelecimento do conflito e, agora, se arrepende ou quer “se fazer de vítima por incapacidade ou por vilania”.
Bobbio remete sua análise aos clássicos da filosofia política e do direito internacional que oferecem um generoso punhado de exemplos de construção do terceiro na política, sua complexidade e, em geral, sua ausência. E conclui com seu colega Pier Paolo Portinaro, autor do livro Il Terzo, una figura del político?: “Falta o único Terceiro que poderia fazer com que a sociedade internacional saísse definitivamente do estado polêmico, o Terceiro acima das partes”. E o que seria isso hoje no Brasil? O que falta?
Lembremos agora a lição de Michelangelo Bovero, sucessor de Bobbio no cargo de chefe da Cátedra de Filosofia Política da Universidade de Turim, em conversa que tivemos, em 2014, na casa do ex-ministro Celso Lafer, em São Paulo. Bovero alertava para a epidemia de “caras vazias” da política. Ou a ausência de projetos consistentes – e, mais uma vez, retornemos a 1994 – que dissessem respeito às necessidades do cotidiano da população – em particular à seguridade social.
Segundo Bovero, um dos motivos de ser difícil diferenciar candidatos é “a usurpação do meio político pela esfera econômico-financeira”, que teria, em sua análise, homogeneizado as propostas e provocado a crise no sistema presidencialista e nas democracias. Essa realidade alimenta o “liderismo” ou o populismo dos “caras vazias”.
Jorge Felix, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP
*FELIX, J. (1994). Uma opção entre a direita e a esquerda – Cardoso acabou transformado na tão procurada “terceira via” entre Lula e Maluf, até então peças em movimento do tabuleiro da sucessão. Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, edição de 7/10/1994, Caderno Especial O Presidente, p. 14.
Artigo extraído do Jornal da USP.
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