Menores desacompanhados: “Só quero ter uma vida normal”
Médicos Sem Fronteiras
Em 22.02.2022
Das ruas de Camarões a uma barraca em Paris: a perigosa jornada de Yannick
Criança em situação de rua em Camarões, Yannick foi sequestrado por traficantes de pessoas em 2019 e vendido como escravo na Líbia. Ele escapou e foi para a Europa, onde se refugiou na França e recebe apoio de Médicos Sem Fronteiras (MSF). Agora reconhecido como menor desacompanhado, ele nos conta sua história.
CAPÍTULO 1
Ele me disse: “Vou te tirar dessa situação”
Criança em situação de rua em uma vila camaronesa
“Eu venho de Baloum, na região de Menoua, no oeste de Camarões. Meu vilarejo fica no interior, com árvores e cabanas. É sempre legal lá porque é cercado por montanhas. Eu morava no bairro da minha mãe. Meu pai morreu quando eu tinha dois anos, mas só descobri isso aos sete. Minha mãe se casou novamente e seu marido me agrediu fisicamente. De vez em quando, eu saía de casa e dormia nas ruas. Minha avó viria e me encontraria.
Nas ruas, eu estava com crianças e adolescentes como eu: expulsos de suas casas, maltratados ou que escolheram sair. Quando saí de casa pela primeira vez, eu tinha 11 anos. Passei alguns meses ao ar livre, depois voltei. Mas nada mudou, então decidi ir embora de vez.
Com meus amigos nas ruas, eu me sentia bem, me sentia livre. Tudo que eu havia passado em casa, toda a violência, ficava no passado quando eu estava nas ruas. Dormíamos em galpões, embaixo de balcões de mercado, em barracas… Para comer, implorávamos no mercado: ‘Madame, com licença, estamos com fome, não temos o suficiente para sobreviver’. Algumas pessoas nos deixavam ajudá-las em troca de um pouco de dinheiro. Os comerciantes do mercado nos pediam para descarregar as mercadorias ou para guardar suas barracas à noite. Durante o dia, caminhávamos muito, íamos aqui e ali, nos divertíamos.
Entre os 11 e os 13 anos, alternava entre a rua, a casa da minha mãe e a casa da minha avó. Depois disso, foram apenas as ruas. Algumas pessoas do meu vilarejo tentaram ajudar. Tornei-me próximo a um homem que me considerava um pouco como seu filho. Ele estava preocupado com o que eu estava fazendo e me encorajou a ir à igreja. Como a igreja ficava ao lado de uma faculdade, de vez em quando, íamos a uma aula. Algumas pessoas tentaram oferecer conselhos sobre como nos proteger nas ruas, mas tínhamos que evitar ficar muito apegados às pessoas.
“Na rua, muitos dos meus amigos desapareceram. De repente, não havia mais notícias deles. Estávamos vulneráveis, então alguns se aproveitaram disso”.
Como acabei fora de Camarões? Este homem a quem me tornei próximo às vezes me levava para sua casa no fim de semana. Ele se tornou como um parente para mim. Ele tinha uma loja no mercado onde vendia todo tipo de coisa. Muitas vezes ele me oferecia comida. Um dia, me disse: ‘Você está morando na rua, mas acho que você é um pouco diferente dos seus amigos, então vou tentar tirar você dessa situação’”.
“Eu nunca havia saído de Camarões. Eu não conhecia nada, exceto Douala, Yaoundé e o oeste do país. Ele sugeriu que eu fosse para o Chade. Eu havia ouvido sobre disso na escola. Ele me disse que havia uma família lá com quem eu poderia viver uma vida normal. Então eu aceitei. Saímos em março ou abril [2019]. Fiquei feliz em ir para o Chade, embora não soubesse realmente para onde estávamos indo. Pegamos o trem e depois o ônibus. Quando chegamos, as pessoas eram totalmente diferentes, então pude ver que não era mais o meu país. A paisagem também era diferente. Tudo havia mudado.
Ele me levou para uma casa camaronesa, me falou que era a família dele e que eu moraria lá, viveria uma vida normal. Eu disse que sim”.
CAPÍTULO 2
“Você se torna a mercadoria deles”
Os traficantes de escravos da Líbia
“Uma noite, partimos em uma viagem. Era noite. Em um momento, eu não sabia mais onde estávamos. Estava começando a ficar com medo. Eles me disseram que íamos passar a noite em outra casa”.
A viagem da qual Yannick fala termina numa prisão em Trípoli, na Líbia, onde foi vendido como escravo. Durante um dia de trabalho forçado, ele conseguiu fugir com um amigo que fez na prisão. Juntos, eles chegaram em uma cidade na Líbia, onde conseguiram se inserir em um grupo de pessoas que entraram em um “Zodiac” (um barco inflável) para atravessar para a Europa. Sua história é colocada em imagens no curta-metragem abaixo.
CAPÍTULO 3
“A primeira coisa que queríamos fazer era ver a Torre Eiffel”
Viagem pela Europa
“Na Sicília, vi o logotipo da Cruz Vermelha pela primeira vez. Quando descemos do barco, eles nos colocaram em um ônibus para nos levar a umas salas grandes. Deram-nos roupas novas, pudemos tomar banho, nos vestir, fazer uma refeição e dormir em uma cama. Eles pedem para você escrever seu nome, idade e país em um pedaço de papel. Fiquei lá por uma semana.
Depois de uma semana, me colocaram em um grupo com os outros menores. Eles disseram que tinham que nos mandar para uma cidade chamada Roma.
“Estávamos trancados, não podíamos sair. Comíamos, tomávamos banho e dormíamos, nada mais. E era assim todos os dias”.
Não nos sentíamos bem lá, então um dia, eu e alguns outros jovens decidimos ir embora para viver nas ruas.
Na Itália, eu não entendia a língua. Não me sentia confortável. Então, decidimos ir para a França. Os africanos francófonos nos deram instruções: sair de Roma, ir para Milão, depois Ventimiglia, depois pegar o trem para a França. Nós tentamos viajar sem pagar os bilhetes por todo o caminho. No trem, a polícia nos prendeu. Eles nos mandaram de volta para a Itália. Caminhamos o dia todo para voltar à Ventimiglia. Outros migrantes nos disseram que poderíamos atravessar as montanhas até Nice. Então nós caminhamos. Deslizamos por barrancos, estávamos cobertos de lama e sujeira. Quando chegamos em Nice, todos nos olharam.
Caminhamos até a estrada principal e nos escondemos. Eram cerca de cinco horas da manhã. Esperamos o primeiro ônibus passar. Queríamos continuar seguindo, para onde quer que fosse. Chegamos ao fim da linha e nos encontramos em Marselha (sul da França). Alguém disse que deveríamos ir para Paris, então pegamos o trem. Quando o condutor (pessoa que checa os bilhetes do trem) apareceu, nós nos escondemos. Chegamos em Paris por volta de cinco da tarde. Não sabíamos para onde ir. Era agosto ou setembro (2019). A primeira coisa que queríamos fazer era ver a Torre Eiffel, mas não chegamos lá naquele dia. Em vez disso, nos perdemos…”
CAPÍTULO 4
“Tinha medo de adormecer e não acordar no dia seguinte”
Vagando por Paris
“Na manhã seguinte, procuramos abrigo. Um homem aconselhou-nos a ir à polícia. Então, foi o que fizemos. Eles começaram a nos fazer muitas perguntas. Isso nos assustou. Eles nos levaram para a Cruz Vermelha. As pessoas da Cruz Vermelha perguntaram sobre o meu passado. Contei tudo a eles: o abuso, a tortura e depois a minha vida na Itália.
“Eu contei toda a minha história. Eles me perguntaram se eu precisava de um psicólogo. ‘O que é um psicólogo?’, perguntei a eles”.
Representação de transtornos mentais em jovens atendidos por psicólogos do centro Pantin.
“Fui aconselhado a ir ao tribunal em Paris, mas não sabia como. Depois, perdi os outros do meu grupo…
No hotel onde eu estava hospedado, não podíamos ficar o dia todo. Éramos autorizados a voltar às 19h apenas para comer, tomar banho e dormir. Eu estava esperando o resultado da avaliação. Não sei quem decide, mas não me reconheceram como menor desacompanhado. Tudo o que consegui foi outro papel para ir ao tribunal.
Na saída (do tribunal), pessoas me pararam. Esse dia foi a primeira vez que fui ao local de Médicos Sem Fronteiras em Pantin. Quando cheguei, um homem chamado Ali me chamou em seu escritório. Ele explicou que eles continuariam o processo e abririam um recurso para apelar ao juiz da infância: ‘Vai levar algum tempo’, me avisou.
Em seguida, fomos levados para buscar barracas na Utopia 56 (organização francesa de ajuda a migrantes). E depois fomos para o local do campo de deslocados. Quando chegamos, vimos muitas pessoas dormindo lá. Montamos nossas barracas em um canto. Voltei a MSF para minhas consultas com o assistente social e o psicólogo”.
“Fiquei naquela barraca em Porte d’Aubervilliers por cerca de dois meses. Estava fazendo muito frio e não tínhamos aquecimento. Tinha medo de adormecer e não acordar no dia seguinte.
Em 19 de dezembro (2019), eu tinha uma consulta com MSF em Pantin, e me disseram que eles haviam encontrado um abrigo para mim. Não precisava mais dormir em uma barraca. Eu tinha um lugar no Passerelle, um abrigo administrado por MSF”.
“Eu ia ficar lá por três meses e depois iria para uma família anfitriã. Comecei a estudar mais. Tínhamos aulas de francês uma vez por semana, e nos ofereciam atividades e treinamento. Foi aí que comecei a pensar no futuro. Eu nunca havia feito nenhum treinamento antes, achei que seria legal. Gostaria de estudar logística e depois trabalhar para organizações humanitárias para ajudar as pessoas que estão passando pelo que eu passei. Muitas vezes, penso nas pessoas que conheci em minha jornada e na maneira como elas sempre me disseram: ‘Vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem’”.
CAPÍTULO 5
“Quando conto essa história, me sinto liberto”
Reconhecido como menor desacompanhado
“Fui reconhecido como menor desacompanhado em março [2020], durante o primeiro lockdown. Eu ia receber cuidados (do Aide Sociale à l’Enfance ou Assistência Social da Infância e Juventude). Isso também significava que eu não iria morar com uma família adotiva.
Recebi a autorização judicial do juiz no final de março (2020)”.
“No dia seguinte, fui encaminhado ao SEMNA (setor educacional para menores desacompanhados). Eles me colocaram em um hotel em Pigalle (bairro de Paris) até que eu pudesse ser posto em outro lugar. Eles me perguntaram onde eu preferiria morar: um apartamento com outros jovens ou um albergue. Eu teria preferido ficar com uma família adotiva, mas isso não era mais possível. Então optei por morar em um apartamento. Meu orientador no SEMNA enviou meu perfil para a Cruz Vermelha. Alguns dias depois, eles me aceitaram. Mudei-me dois dias antes do fim do lockdown.
Quando conto essa história, me sinto liberto. Porque quando estou sozinho, penso muito nisso, embora prefira ficar só”.
“Os pequenos momentos que me fazem sentir bem são quando estou sozinho em casa e quando vou ver meu psiquiatra. Eu me sinto bem depois. Quando volto para Aubervilliers também. Não era uma vida fácil, mas eu gosto de ir lá e passar o tempo. Isso me faz me sentir bem. E mal também. Eu vejo pessoas, não as mesmas pessoas de quando eu estava lá. Eu vou lá e me sento, se alguém vem, eles se sentam ao meu lado e começamos a conversar. Conversamos, tentamos descobrir quem é o outro, compartilhamos o que estamos passando.
É importante compartilhar minha história, explicar o que passei. Tudo que eu quero é ter uma vida normal, um emprego. Para poder fazer alguma coisa, ter uma família um dia e viver como todo mundo”.
Foto destaque: Augustin Le Gall