A coletânea da vida

Por

Enildo Luiz Gouveia*

Em 16.06.2022

Quantos de nós já não fomos outros e outras? Lembro-me da disputa filosófica travada entre Heráclito e Parmênides, na Grécia Antiga. Heráclito, defensor do movimento constante, da guerra dos contrários, e Parmênides, defensor da permanência, da imutabilidade do ser. A grande questão era: algum fenômeno ou realidade pode ser a causa de si mesmo? Ou será que sua existência só se dá em função do contrário? Em síntese, se o movimento existe sua causa só pode ser um antimovimento, algo não poderia ser a causa de si mesmo.

Esta é uma reflexão que para mim alcança tudo. Das nossas vidas, passando pela ciência e pela religião. Será que o que somos hoje é fruto de sucessivas mudanças ou se, estando em mudança, algo permaneceu em nós inalterado? Difícil estabelecermos uma análise de nós mesmos, pois, com frequência, esquecemos e/ou ignoramos coisas, fatos e pessoas que fizeram parte da nossa história.

Tenho dito que a Existência (com consciência) é um fardo muito pesado de ser carregado. Nada mais nos tortura que ter a consciência de que existimos para o fim. Enquanto Ato de existência somos cada vez menos Potência, parafraseando a reflexão aristotélica. Ou seja, a medida da nossa realização enquanto ser-no-mundo dá-se num caminho que aponta para o término da nossa existência. Aceitar isto dói, mas não compreender, pode levar a loucura. Talvez seja por isso que apesar de todo progresso ainda somos seres religiosos, cada vez mais sem religião mas, ainda assim, religiosos. A crença e busca pela transcendência parece ser a única coisa capaz de dar sentido à existência.

Exceto pela certeza da morte, não temos outras verdades universais. Daí que nossa existência consciente se torna um fardo. Ao que nos consta, os outros animais não possuem a consciência, sobrevivem pelo instinto de manterem-se vivos, enquanto nós penamos na busca por explicações convincentes.

Seguimos sendo uma constante interrogação. A dúvida é que nos impulsiona ou aprisiona. A coletânea imperfeita de vários Eus instantes e, por vezes, estanques. Se somos movimento constante, se algo permanece ou se tudo for mudança, parece que nada se altera diante da realidade que não conseguimos abarcar com nosso pensamento. Há, no entanto, um impulso para seguir, mesmo que lento, discreto e cambaleante. Seguir é tudo que nos resta, mesmo que o destino seja incógnita.

*Enildo Luiz Gouveia é professor, poeta, cantor, compositor, teólogo e membro da Academia Cabense de Letras – ACL.

Imagem: O pensador de Rodin – Internet