O pecado do general
Ayrton Maciel*
Em 13.07.2020
Melancolia e saudosismo são estados de ânimo diferentes, não antagônicos, mas cerebralmente perigosos para o indivíduo e para a coletividade. O general da reserva e ex-comandante do Exército (1915-1919), Eduardo Villas Bôas, publicou artigo – neste final de semana – no jornal O Estado de São Paulo (Estadão) expressando um melancólico saudosismo da ditadura militar de 1964 e uma evidente contrariedade com a democracia que se seguiu ao processo de abertura e institucionalização do País, nos anos 80. A redemocratização consagrada pela Constituição de 1988.
O desencanto do general tem a ver com o imaginário dos militares e de extremistas de direita de que, na ditadura, como que possuídos por poderes divinos para apontar a salvação, o Brasil era melhor. O cultivo da ilusão serve para encobrir uma farsa, alimentar o apropriado autoperdão e se eximir de culpa. Villas Bôas diz que o Brasil perdeu o rumo – apontado por 64 – da “ideologia de desenvolvimento e do sentido de progresso”, porque os brasileiros se deixaram “impregnar por esquemas mentais estranhos”. Isso, a partir dos “anos 80” – o da redemocratização -, resultando no fracionamento ideológico. Isso é falso.
Um dos grandes conflitos do País está exatamente nessa arrogância militar. O imaginário de que são o poder moderador, o quarto poder, o que é negado pela Constituição. O poder é civil e os militares são o braço de defesa do país e da democracia. O civil manda, o militar obedece. De forma simples e óbvia, é assim no mundo civilizado e democratizado. Quem não concorda, não coloque ou retire a farda. Nos EUA – inspiração tripartite (política, judicial, constitucional) e dos militares brasileiros -, a divisão dos poderes e a soberania civil são imaculáveis. No Brasil, os generais se acham acima dos poderes.
Aí está o ameaçador entrave brasileiro. Recentemente, a maior autoridade militar dos EUA, o chefe do Estado Maior das FFAA, general Mark Milley, pediu desculpas ao povo por ter participado de caminhada ao lado de Donald Trump, que havia mandado dispersar uma manifestação pacífica contra o racismo e a violência policial para ir até uma igreja. Uma encenação política de Trump. Milley admitiu que a sua presença abriu uma discussão sobre o papel dos militares na sociedade civil e deu a impressão de que as FFAA estão envolvidas na política. O general reconheceu que foi “um erro”.
O Brasil é uma contradição. Os generais dizem defender a democracia, mas explicitamente para inglês ver e americano aplaudir. O artigo do general Villas Bôas mostra o entrave sempre ameaçador ao país. Um texto xenófobo, fascista, racista (ao moldar a família brasileira), defensor de 64 (ao expor o passado como caminho) e que desqualifica a democracia (ao querer mostrá-la como incapaz de dar rumo de desenvolvimento ao País). Errou, Villas Bôas: o BR não perdeu o rumo a partir dos anos 80. Os generais é que não aceitam o prumo da democracia.
O ministro Gilmar Mendes, do STF, em live da revista IstoÉ, neste sábado (11), bateu direto no papel optado pelos generais, num momento de grave pandemia, com 71 mil mortos e mais de 1,8 milhão de contaminados por Covid-19. Gilmar disse não ser aceitável “o vazio no comando do Ministério da Saúde”, em plena pandemia de coronavírus, e levantou a hipótese de que ter o general Eduardo Pazuello interino à frente da Pasta visa a tirar “o protagonismo” do governo Jair Bolsonaro e atribuir total responsabilidade a Estados e municípios. Conclusão do ministro: “o Exército está se associando a esse genocídio”.
O saudosismo e a melancolia do general Villas Bôas não encontra respaldo no passado que o ilude. A ditadura de 64 não deixou nenhuma política de educação de Estado, sequer houve uma base curricular de qualidade e não-ideológica. Provavelmente, o projeto nacional de formação, reverenciado pelo general, tem por base o Mobral e as disciplinas Moral e Cívica e OSPB. Esquece Villas Bôas que foi com os generais que a educação mais valorizou o QI (quem indica?), no interesse e pelo apoio da Arena, num disfarce político da ditadura.
O saudosismo de Villas Bôas o ilude. Velhos tempos, obscuros dias. Com 64, a dívida externa do País, que tanto afligiu a economia e emperrou nosso desenvolvimento, multiplicou-se a ponto de ser considerada impagável. Mas, pagamos. As obras inacabadas, como a Transamazônica e as usinas de Angra dos Reis, deixaram a conta e o serviço a concluir. O mal da corrupção endêmica, apesar de todo o poder que tiveram os generais, está relacionado em listas e foi encoberto pelo regime para que se parecesse imune. A desigualdade social, no País, aprofundou-se. Um legado desastrado e caro.
Generais não fazem autocrítica. Um fato. Por isso, a melancolia só alimenta saudosismo. De pijama, a pessoa tem sempre tempo para pensar nos pecados.
*Ayrton Maciel é jornalista.
Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
Os artigos/crônicas aqui veiculados têm edificado e chamado à nossa reflexão. Parabéns aos acadêmicos da ACL Prof. Ricardo Jorge e Jairo Luna pela lucidez e independência de pensamento em seus artigos