Produção intelectual das mulheres nos séculos 19 a 21
Laila Correa e Silva*
Em 24.04.2025
O percurso das mulheres brasileiras em busca da conquista de direitos básicos — como o de ser alfabetizada, ter acesso a oportunidades de trabalho igualitárias, frequentar o ensino superior, votar e ser votada, dentre outras demandas — remonta ao século 19 e, nesse longo caminho, as mulheres que exerceram a atividade da escrita em locais diversos do território nacional ocuparam papel de destaque na formulação de questões e nos debates travados na esfera pública.
Nísia Floresta Brasileira Augusta, pseudônimo da norte-rio-grandense Dionísia Gonçalves Pinto (1810-1885), foi uma das primeiras mulheres no Brasil a romper os limites do espaço privado — âmbito doméstico ao qual as mulheres de diferentes classes sociais e etnias estavam restritas — e a publicar contos, poesia, novelas e ensaios nos jornais de grande circulação, como O Diário do Rio de Janeiro, O Liberal e O Brasil Ilustrado. Sua constante presença na imprensa brasileira pode ser notada desde 1830, com sua participação em O Espelho das Brasileiras (Recife), comentando questões polêmicas de sua época.
Em Opúsculo Humanitário, obra publicada em 1853, Nísia Floresta reuniu 62 artigos publicados por ela na imprensa, todos voltados à importância de se educar as mulheres, associando o atraso de uma sociedade ao descaso no qual ela encerrou o chamado “sexo frágil”, termo à época amplamente empregado para se referir ao sexo feminino, sintetizando toda a carga de preconceito e, consequente, exclusão que recaía sobre as mulheres brasileiras. Nísia argumenta que “é verdade incontestável que a educação da mulher muita influência teve sempre sobre a moralidade dos povos e que o lugar que ela ocupa entre eles é o barômetro que indica os progressos de sua civilização”. Dentre outros fatores expostos na obra, a educação igualitária entre mulheres e homens poderia promover um avanço na sociedade brasileira, tornando as mulheres aptas para o exercício de qualquer atividade, inclusive a escrita literária.
Acerca desse ponto, as mulheres letradas dos séculos 19 e 20 travaram muitas batalhas, seja em periódicos, escritos e editados por elas mesmas, seja em romances, poesia e contos, defendendo o direito de participação feminina na cultura letrada nacional e a possibilidade de publicar obras, a despeito da crítica literária masculina que as classificava como incapazes de criações artísticas de qualidade, se comparadas aos escritos masculinos.
Exemplos e depoimentos acessíveis atualmente são os paratextos de obras de autoria feminina, que compreendem prefácios, notas introdutórias, dedicatórias, preâmbulos, os quais possibilitam apreender significados históricos, sociais e culturais do ato da escrita realizada à época. Três escritoras atuantes nas letras nacionais são exemplares para esse exercício de leitura: Maria Firmina dos Reis (1825-1917), Josephina Álvares de Azevedo (1851-1913) e Ignez Sabino (1853-1911).
Não por acaso, em pleno século 21, Opúsculo Humanitário de Nísia Floresta figurou como a primeira obra de leitura obrigatória da nova lista do vestibular da Fuvest e foi abordada pelo projeto BBM no Vestibular, desenvolvido pela Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin desde 2017, com ciclos de aulas ministradas por pesquisadores(as) e professores(as) da USP ou de outras universidades, que versarão sobre as nove obras selecionadas, todas de autoria feminina, algo inédito nas listas de vestibulares do Brasil.
Trata-se de um momento de suma importância para abordar a produção intelectual das mulheres nos séculos 19, 20 e 21 e trazer para o centro de leituras e debates obras e trajetórias que ficaram esquecidas por muito tempo, muitas sem reedições acessíveis ao público leitor. Afortunadamente, a Biblioteca Brasiliana guarda um acervo fantástico que compreende “obras raras” dificilmente encontradas em outras bibliotecas do País. No que concerne à autoria feminina — e a todas as obras citadas neste texto —, o acervo da BBM apresenta primeiras edições das obras de Nísia Floresta, Ignez Sabino, Josephina Álvares de Azevedo, Délia (pseudônimo de Maria Benedicta Câmara Bormann, 1853-1895), dentre outros grandes nomes da literatura nacional do século 20, como Albertina Bertha (1880-1953), Francisca Júlia da Silva (1871-1920) e Maria Lacerda de Moura (1887-1945).
Ao apresentar como leituras obrigatórias as obras Opúsculo Humanitário (1853), Nebulosas (1872), de Narcisa Amália; Memórias de Martha (1899), de Júlia Lopes de Almeida; Caminho das Pedras (1937), de Raquel de Queiroz; O Cristo Cigano (1961), de Sophia de Mello Breyner Andresen; As Meninas (1973), de Lygia Fagundes Telles; Balada de Amor ao Vento (1990), de Paulina Chiziane; Canção para Ninar Menino Grande (2018), de Conceição Evaristo, e A Visão das Plantas (2019), de Djaimilia Pereira de Almeida, a Fuvest redireciona a atenção para a escrita de autoria feminina produzida durante os séculos 19, 20 e 21 no Brasil, África e Portugal. Analisadas em conjunto, as obras revelam um longo percurso de embates e disputas em busca de reconhecimento, desnudando o recorte de gênero dos currículos escolares e da formação do arcabouço literário e canônico do Brasil e outros países de língua portuguesa.
Evidentemente, a lista não contempla a totalidade da riqueza da produção literária feminina, mas, ao mesmo tempo, destaca obras e nomes que tiveram importância na história cultural nacional, ainda que tenham sido apagadas da memória mais recente, caso de Nebulosas da poeta Narcisa Amália.
A coletânea de poemas publicada em 1872 obteve grande aceitação pela crítica literária masculina à época, contudo não figurava como leitura prioritária atualmente, ao menos até a lista da Fuvest. No prefácio à primeira edição, escrito por Pessanha Póvoa, encontra-se a seguinte assertiva, que agora se concretiza: “Narcisa Amália (…) terá uma consagração nos anais do futuro desta legião de inteligências que está celebrando as glórias do presente”.
Outra escritora que obteve destaque nos séculos 19 e 20 foi Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), autora de Memórias de Martha, que estreou a produção romanesca da autora carioca como folhetim da Tribuna Liberal (Rio de Janeiro, 1888 a 1889). Apesar do relativo sucesso no cenário literário carioca de fins do século 19 e começo do 20, a importância dos mais de dez romances escritos por Júlia Lopes ainda precisa ser explorada.
Memórias de Martha é um romance potente que revela por meio de sua personagem-narradora as dificuldades de ser mulher e viver em um cortiço carioca nos anos finais do Império. Comparativamente, O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo, figura como o grande romance naturalista que retrata o cotidiano nos cortiços cariocas de fins do século 19, enquanto Memórias de Martha sofreu com o silenciamento imposto à produção literária de mulheres.
Ao retomarmos essas leituras poderemos finalmente reordenar os livros nas estantes de modo mais igualitário e diverso. Em grande medida, a BBM participa de uma possibilidade ímpar de releitura da história literária nacional, ao guardar um acervo de autoria feminina que pode adquirir ainda mais destaque, com “raras edições” de autoria feminina que trazem temas e problemas políticos e culturais, os quais nos permitem ler, desde as precursoras de um movimento até a conquista de mais visibilidade, mais debates e maior público leitor. Nísia Floresta não poderia ter previsto que Opúsculo Humanitário seria a via de entrada para mulheres – e homens – na universidade pública. Já avançamos alguns passos!
*Laila Correa e Silva, pesquisadora residente da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin da USP.
Artigo publicado originalmente no Jornal da USP