Estado, religião e laicidade: repercussões do movimento neopentecostal brasileiro

Por

Ricardo Jorge Silveira Gomes*

Em 04.08.2020

Desde a separação entre o estado brasileiro e a igreja, prevista na Constituição de 1891por ocasião da queda do império português com a instauração da República, o tema da laicidade é discutido de forma calorosa, e vez por outra, vem à tona por meio de situações diversas que, ao longo da nossa história recente, parecem evidenciar o quão tênue é a linha que divide estas esferas. Seja por questões de ordem moral e ética, ou por questões relacionadas à dificuldade em aplicar de forma coerente o princípio da laicidade sem prejuízo da liberdade religiosa assegurada no texto constitucional, observamos o quão complexo é administrar estas questões (EMMERICK, 2010).

A análise do caso brasileiro, reveste-se de particular característica quanto à questão da laicidade, uma vez que durante o período de dominação portuguesa, o Brasil sofreu forte influência do catolicismo, que aliado ao projeto expansionista português, subjugou e determinou os rumos das colônias que não eram mais do que parte de um grande projeto político-econômico, onde a religião desempenhava o papel fundamental de legitimação no que foi o denominado sistema colonial. Deste modo, podemos ver o quanto a igreja ditava o que era ou não aceitável do ponto de vista moral e mesmo jurídico, uma vez que as leis vigentes no Brasil Colônia eram as mesmas de Portugal, confundindo-se muitas vezes com as leis de Deus, (leia-se, com as leis ditadas pela Igreja Católica). Com isso, fica evidente que a atuação da Igreja Católica foi muito além do campo religioso, estendendo-se no espaço social e político, situação que não foi alterada nem com a proclamação da independência do Brasil, ocorrida em 07 de setembro de 1822.

Como resultado deste contexto histórico, podemos observar que foi construída uma visão muito particular quanto ao estabelecimento das relações entre o Estado e a religião no Brasil, que evidenciam uma compreensão da laicidade a partir da noção de pluriconfessionalidade, conforme a categorização proposta por Diniz, Lionço e Carrião (2010), onde no lugar da neutralidade confessional que marca países como a França, existe o entendimento do fato religioso como anterior ao pacto social, sendo portanto, a pluralidade religiosa vista como expressão pública do respeito à diversidade religiosa.

O pluralismo religioso no Brasil está em crescente expansão e com ele a competição religiosa e o número de igrejas se multiplicam quase que diariamente, bem como o número dos chamados “sem-religião” que, importa frisar, não deixam de ser, necessariamente, religiosos, embora não se considerem pertencentes a nenhuma religião organizada. Esse processo de mudança num país tradicionalmente católico é fruto de uma enorme mobilidade no campo religioso.

O neopentecostalismo teve seu início no Brasil, por volta da segunda metade da década de 1970 (MARIANO, 2004), quando vários segmentos das igrejas evangélicas de cunho pentecostais, IURD (Igreja Universal do Reino de Deus), Internacional da Graça de Deus, Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra e Renascer em Cristo passaram a pregar a doutrina da renovação pentecostal (MARIANO, 2004). Esse movimento, como ficou conhecido, caracteriza-se por enfatizar a atualidade dos milagres divinos, a guerra contra o diabo e seus representantes aqui na terra e a Teologia da Prosperidade, segundo a qual os filhos de Deus, os cristãos, devem ser prósperos e vitoriosos em seus empreendimentos terrenos, doutrinas bastante difundidas entre seus seguidores, não importando a classe social a que pertençam, o que os fez crescer, ganhar visibilidade e seguidores no Brasil.

Embora o fenômeno do neopentecostalismo seja considerado recente, suas origens remontam o pentecostalismo “clássico”, que teve sua introdução e expansão no Brasil no início do século XX, mais precisamente na primeira década do século (MARIANO, 2004). O pentecostalismo “clássico” abrange as denominações Congregação Cristã no Brasil e Assembleia de Deus. Um segundo grupo de igrejas surge no Brasil a partir da década de 1950, tendo seu evangelismo centrado na pregação da cura divina. Desse grupo surgiram as igrejas Brasil Para Cristo, Deus é Amor e Casa da Benção. O crescimento numérico constatado a partir dos anos de 1980, especialmente de denominações pentecostais e neopentecostais, transformou as maneiras de pensar os evangélicos no Brasil. Após as duas décadas que separam o censo de 1991 e o de 2010, o percentual de declarantes evangélicos passou de 9% para 22,2%, um aumento sobretudo de denominações pentecostais e neopentecostais (Censo, 2010).

No município do Cabo de Santo Agostinho, cidade localizada no Estado de Pernambuco, os católicos (Apostólico Romano, Apostólica Brasileira e Católica Ortodoxa), representam 51%. Entretanto, os evangélicos (de Missão, igreja evangélica Luterana, Igreja Evangélica Presbiteriana) representam 49%, da população do município (IBGE, 2010).

Segundo Joana Puntel (2010), estamos vivendo uma cultura midiática. “Aqui, nasce um novo sujeito em suas relações, bem como uma nova maneira de ensinar e de aprender, há, portanto, uma nova lógica”. Para a estudiosa, existe atualmente a interatividade, com as redes digitas, e uma nova forma de comunicação começa a se realizar e, “agora, todos são interlocutores”. A cultura midiática está no núcleo da globalização e também no centro das transformações sociais. Consequentemente, ela propicia mudanças nos diversos segmentos da sociedade e na vida cotidiana dos indivíduos. Isso resulta em um movimento no qual a cultura sofre ações que geram mudanças em ambientes díspares de veiculação da informação, e, ainda, nos mais variados suportes que propiciam a interação com o receptor, construindo e localizando o indivíduo nesse novo momento cultural da sociedade.

Quando entram no mundo da mídia, as igrejas não levam em conta que o processo mudou. Os dispositivos tecnológicos, tão importantes, são apenas uma pequena parte, a ponta visível do iceberg, de um novo mundo estruturado pelo processo de midiatização da sociedade […] Entendo que muito mais que uma tecnointeração, está surgindo um novo modo de ser no mundo, representado pela midiatização da sociedade (PUNTEL, 2010.p.156).

Inseridos nesse universo, surge um novo jeito de ser evangélico e, a primeira impressão que se tem, é que as igrejas neopentecostais se diferenciam de igrejas como a Assembleia de Deus, e se aproximam de outras como a Renascer, marcadas predominantemente pelo caráter neopentecostal de seus membros e pela herança cultural herdada de seus fundadores. A Marcha no Brasil é herdeira direta da City March, realizada em Londres em 1987, em resposta às diferentes formas de manifestações que os grupos descontentes com o governo Tatcher, especialmente os de juventude, herdeiros da “contracultura” estavam vinculados. A March for Jesus, como passou a ser chamada, se tornou um evento internacional, realizado em mais de uma centena de cidades de todo o mundo e, o centro do evento, desde seu surgimento, foi a utilização da música como forma privilegiada para o evangelismo, extrapolando “as paredes dos templos” (Giumbelli 2014). Diferente de versões de outros países, em que a marcha une protestantes e católicos (Ingalls 2012), no Brasil, a “Marcha” passa a ser realizada em 1993 através de esforços da Igreja Renascer em Cristo, (Neopentecostal) que busca uma maior visibilidade aos “evangélicos” no país. Articulada com importantes setores da indústria fonográfica, essa igreja teve papel chave na formulação do que veio a ser chamado de música gospel no Brasil, termo que foi inclusive patenteado pela bispa Sônia Hernandes, líder dessa denominação (Cunha, 2007).

20ª Marcha para Jesus no Cabo de Santo Agostinho Foto: joaobarbosafotos.blogspot.com

A Marcha Resgate, que pode ser considerada um desdobramento da Marcha para Jesus, constitui-se no maior evento evangélico da cidade de Cabo de Santo Agostinho e foi iniciada no ano de 1998 pela igreja Kerigma, e nos primeiros anos conseguiu unir as principais lideranças evangélicas da cidade, contando com mais de 20 mil pessoas. Podemos observar que a marcha resgate está profundamente inserida na “cultura gospel” nacional. Prova disto é a presença maciça de artistas e pastores de outras denominações evangélicas nas edições da marcha, o que não é tão frequente em outros segmentos. Assim como em todas as edições já realizadas, a Marcha Resgate se constituiu no município do Cabo de Santo Agostinho como um evento ancorado em apresentações musicais e que passou, por isso, a ser parte de um circuito de música evangélica que vem ganhando cada vez mais corpo desde então. A adesão dos fiéis pentecostais e principalmente neopentecostais não tardou, acompanhando um movimento geral de busca de alianças em diferentes segmentos da sociedade cabense, principalmente na esfera pública municipal, que atualmente é a maior financiadora da Marcha Resgate. (AMUPE1, Abril, 2015).

A marcha opera como uma ferramenta fundamental de reconstrução do espaço público a partir da experiência e dos significados que passam a estar atrelados a ela. Altera-se desse modo a paisagem da cidade, não apenas em termos visuais, mas também com as milhares de pessoas que marcham carregando cartazes e blusas oficiais da marcha, com as mensagens relativas a Jesus e aos patrocinadores. Como o autor afirma abaixo:

“A chamada Nova História cultural não recusa de modo algum as expressões culturais das elites ou classes “letradas”, mas revela especial apreço, tal como história das mentalidades, pelas manifestações das
massas anônimas: as festas, as resistências, as crenças heterodoxas… Em uma palavra, a Nova História cultural revela uma especial afeição pelo informal e, sobretudo, pelo popular.” (VAINFAS, 1997,P.148,149).

No processo da marcha, liturgia e modelo midiático são transformados, construindo uma nova forma de se colocar na cidade enquanto “evangélicos”, de modo que podemos deduzir que a Marcha Resgate é um evento chave para pensar na construção de uma ocupação de espaço político pelo segmento evangélico denominado neopentecostal não somente na cidade do Cabo de Santo Agostinho, mas de modo mais geral nos diversos movimentos correlatos à marcha em curso no território brasileiro.

REFERÊNCIAS

BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

1 Associação Municipalista de Pernambuco. A história da Amupe teve início em 28 de março de 1967, por um grupo de prefeitos que sentiu a necessidade de que juntos poderiam ser mais fortes para reivindicar e buscar orientações administrativas para um melhor funcionamento das 184 prefeituras municipais do Estado.

CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Orgs). Domínios da História: Ensaios
de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro. Campus, 1997.

CUNHA, Magali do Nascimento. A explosão gospel: um olhar das ciências humanas
sobre o cenário evangélico no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X. 2007.

DINIZ, Débora; LIONÇO, Tatiana; CARRIÃO, Vanessa. Laicidade e ensino religioso
no Brasil. Brasília: UNESCO/Letras Livres/Editora UnB, 2010.

EMMERICK, Rulian. As relações Igreja/Estado no Direito Constitucional Brasileiro. Um
esboço para pensar o lugar das religiões no espaço público na contemporaneidade. In:

REVISTA LATINO AMERICANA/ Sexualidad, Salud y Sociedad. Disponível em:
<http://www.epublicacoes.
uerj.br/index.php/SexualidadSaludSociedad/article/view/383/822 – 2010.>
Acessado em: 20 de maio de 2017.

GIUMBELLI, Emerson. “Cultura pública: evangélicos e sua presença na sociedade
brasileira”. In: E. Giumbelli. Símbolos religiosos em controvérsia. São Paulo. 2014.
Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/diarios/90671507/amupe-29-04-2015-pg-
3> Acesso em: 17/08/2016.

IBGE, Censo demográfico 2010: Características da população e dos Domicílios –
resultados preliminares. Rio de Janeiro: IBGE, 2011.

MARIANO, Ricardo. “O future não será protestante”. Ciencias Sociales y Religión /
Ciências Sociais e Religião, v. 1, n. 1: p. 89- 114. 1999.

MARIANO, Ricardo. Neopentecostais – Sociologia do Novo Pentecostalismo no Brasil.
Loyola, São Paulo, 2014.

PUNTEL, J. T. Comunicação: diálogo dos saberes na cultura midiática. São Paulo:
Paulinas/ Sepac, 2010.

SIEPIERSKKI, Paulo. “Pós-Pentecostalismo e Política no Brasil”. Estudos teológicos. V.
37. Paulinas: São Paulo. 1997.

*Ricardo Jorge Silveira Gomes é professor, historiador, mestre, doutorando em Ciências das Religiões e membro da Academia Cabense de Letras

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