Lei Maria da Penha é uma grande conquista social
Hermes Vilchez Guerrero*
Em 08.07.2020
A Constituição da República, no artigo 226, § 8º, determina: “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”. É, portanto, natural que o Direito Penal proteja essa importante instituição. Em 2014, surgiu a Lei nº 11.340, do dia 7 de agosto. Esta lei visa proteger a saúde física e mental da mulher, orienta a sociedade a viver sem violência, especialmente, no caso, sem violência contra a mulher. Também determina a adoção de políticas públicas de proteção às mulheres.
Como se sabe, o Código Penal em sua quase totalidade utiliza o vocábulo “alguém” ao se referir ao sujeito passivo dos tipos penais. Excepcionalmente, em alguns crimes, faz referência a alguma qualidade específica da vítima de determinado tipo penal. É o que ocorre nos crimes da denominada Lei Maria da Penha.
A referida lei surgiu para suprir grave omissão legislativa havida no país. Em 2002, o Brasil foi condenado por omissão e negligência pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por não haver tomado medidas para impedir o agravamento da lesões sofridas pela farmacêutica Maria da Penha. Em razão disso, o governo brasileiro se comprometeu a elaborar legislação específica relativa à violência doméstica contra as mulheres. Esta violência deve ser entendida como a agressão que provoca morte, lesões físicas, psicológicas, morais ou sexuais em mulheres quando a agressão é cometida contra ela por ser mulher.
Desde o início dos anos 1980, quando surgiram as primeiras delegacias de polícia para proteger mulheres, primeiro em São Paulo, depois em Minas, vem se tentando reprimir de forma mais severa essa modalidade de violência.
A repressão à violência doméstica ocorre tanto no plano interno quanto externo. No primeiro caso, pode ser citada a assinatura, por parte do Brasil, da Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizado em Pequim, em 1995. Do mesmo modo, o Brasil aderiu à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a violência contra a mulher (Belém, Pará, 1995).
Na esfera interna, sem dúvida, o destaque está na lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, em razão das graves lesões sofridas pela farmacêutica, tendo seu caso sido levado até a Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) que, por sua vez, encaminhou-o à Corte Interamericana de Direitos Humanos que puniu o Brasil como já mencionado. A lei Maria da Penha busca dar efetividade a essas Convenções e, em especial como referido, à Constituição da República.
Ao contrário do que se possa imaginar inicialmente, a violência contra a mulher não é praticada apenas fisicamente (artigo 7º, I, da lei em comento). Essa também pode ser psicológica, moral, sexual e até patrimonial.
Lamentavelmente, não são raros os casos levados à justiça nos quais mulheres são apontadas de terem problemas de insanidade mental, de serem perseguidas pelas ruas, de serem permanentemente amedrontadas e ameaçadas (violência psicológica, art. 7º, II). Outra modalidade de violência contra a mulher e bastante frequente é a sexual (art. 7º, III). A lei também prevê e reprime a violência patrimonial (art. 7º, IV) que pode acontecer, v.gr., quando a mulher é impedida de ter acesso a suas finanças, cartões de crédito ou dinheiro com o objetivo de aumentar sua vulnerabilidade. Também é comum o relato de terem sua intimidade exposta publicamente através de imagens ou por meio de humilhações, além de injúrias, difamações e calúnias (violência moral, art. 7º, V).
A lei em comento tem incidência quando a vítima é uma mulher cisgênero ou transexual (anima muliebris in corpore virile inclusa), hétero ou homossexual, sempre que se identifique com o sexo feminino.
É necessário registrar que não basta para a aplicação da lei que a vítima seja mulher, é indispensável que a agressão tenha ocorrido precisamente pelo fato de a vítima ser mulher ou no ambiente doméstico, familiar ou íntimo, tendo o agressor se aproveitado da vulnerabilidade da vítima. Desse modo, v.gr., uma agressão ocorrida contra uma mulher por causa de um acidente de trânsito ou numa agência bancária por um desconhecido não tem poder de fazer incidir a aplicação da norma protetiva específica.
É nosso dever, especialmente dos educadores, do poder judiciário, do ministério público e da polícia, reprimir, punir e, principalmente prevenir a violência contra a mulher.
Infelizmente, a história registra que essa violência, muitas vezes, esteve presente em muitas sociedades e que era até permitida pela legislação e pelos costumes, sendo tolerada por razões de machismo. A esse respeito, pode ser citado o caso de Roma, quando era permitido aos maridos punir suas esposas até a morte “se necessário”. Outro exemplo, este mais recente, é o que ocorria na common law, na Inglaterra e no continente americano, que dava direito ao esposo de aplicar castigos físicos a sua esposa com uma vara. Esta permissão teve vigência nos séculos XVIII e XIX.
Da mesma forma, uma rápida pesquisa pelos códigos latino-americanos elaborados no século XIX e que tiveram vigência na maior parte do século XX, ao tratar do homicídio, não raro, preveem, como causa especial de exclusão de ilicitude, a morte de sua mulher quando ocorrida em flagrante adultério.
Se, por um lado, é triste que precisemos de uma lei específica para proteger as mulheres; de outro lado, é muito bom constatar que o poder público vem cumprindo sua função para dar efetividade às normas da lei nº 11.340, de 2006.
A existência de delegacias especializadas de mulheres, do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, o Fórum Nacional de Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e da Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes e especificamente da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (COMSIV) de nosso Tribunal de Justiça são excelentes notícias para efetivamente diminuir e punir agressões a mulheres. Quem se dispuser a pesquisar sobre a atuação desses órgãos constatará que o trabalho desenvolvido nos permite ser otimistas em relação à melhoria do ainda grave quadro que assola nossa sociedade.
É fundamental observar sempre que a violência doméstica contra as mulheres não diz respeito a um único segmento da sociedade e, muito menos, que só interessa às mulheres. É uma questão multilateral, com diferentes ramificações que, por isso mesmo, interessam dentre outros à Medicina, à Psicologia, à Sociologia, ao Direito e, principalmente, aos Direitos Humanos. Tal assertiva está expressa na lei nos arts. 29 a 32.
Em atendimento à determinação de adoção de políticas públicas determinada na lei (art. 35-40), têm sido tomadas, em todas as esferas da administração, importantes medidas especialmente para prevenir a violência contra as mulheres. A esse respeito merecem destaque as campanhas que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Tribunal de Justiça de nosso Estado estão realizando para combater essa modalidade de violência.
Nestes 14 anos da Lei n. 11.340, ocorreram importantes alterações que vieram aprimorá-la e tornar sua aplicação mais efetiva.
Dentre as inúmeras medidas previstas na lei (art. 18-23) e que podem ser aplicadas pelo Poder Judiciário para prevenir e reprimir essa grave modalidade de violência, podem ser destacadas:
– medidas protetivas de urgência, v.gr., suspensão do porte de armas, afastamento do agressor do lar e distanciamento da vítima;
– assistência econômica à vítima, se esta for dependente economicamente do agressor;
– decretação de prisão preventiva do agressor;
– criação de serviços de proteção e de assistência social como a Casa da Mulher Brasileira para acolher vítimas que não tem para onde ir;
Também merecem destaque:
– alteração da Lei de Execução Penal para determinar que o agressor realize cursos específicos sobre violência doméstica;
– a necessidade da presença da vítima perante o magistrado para que possa renunciar ao prosseguimento do processo;
Outra importante alteração legislativa para dar efetividade à proteção da vítima surgiu com a Lei n. 13.641, de 3 de abril de 2018. Com ela, caso o agressor desrespeite a medida imposta de distanciamento da vítima, cometerá o crime de “descumprimento de medida protetiva”, com pena de 3 meses a 2 anos de prisão (art. 24-A).
Outra relevantíssima inovação (Lei nº 13.104, de 2015) se encontra na criação da qualificadora prevista no art. 121, § 2º, VI, que tem a seguinte redação: “contra a mulher por razoes da condição de sexo feminino”. Com isto se afasta a possibilidade de aplicar ou não a qualificadora como ocorre com o motivo fútil ou torpe, evita-se o debate se o meio empregado foi insidioso ou não, se o crime foi cometido à traição, ou se foi empregado recurso que dificultou a defesa da vítima ou tornou impossível sua defesa. Com a nova qualificadora, basta que o homicídio tenha sido cometido contra uma mulher por esta razão e incidirá sua conduta na forma qualificada do homicídio, com pena de 12 a 30 anos de reclusão.
É importante sempre ter em conta que somente as leis não serão capazes de resolver a violência contra as mulheres. É indispensável ensinar os meninos a respeitar as meninas em todos os aspectos. Por sua vez, as meninas devem saber que elas não podem tolerar desrespeitos, que não podem ser agredidas física, psicológica ou moralmente e, muito menos, por serem “apenas meninas”.
Aliás, não se pode esquecer que quase sempre, em toda violência cometida contra uma mulher, também haverá outras vítimas, as crianças e adolescentes, além de toda a sociedade.
Pesquisas sociológicas demonstram que, em grande número de crimes contra mulheres, está presente uma situação de vulnerabilidade econômica, psicológica, social e de outras ordens, por isso, é fundamental o empenho de todos para que cada vez mais as mulheres ocupem, sem discriminação, os mesmos postos ocupados pelos homens. Embora isto não coloque fim ao problema, certamente contribuíra para diminuir a gravidade da situação.
A Lei Maria da Penha e a campanha do Tribunal de Justiça de Minas Gerais é um chamado ao exercício de nossa solidariedade, de nossa empatia, de nossa responsabilidade com nossos semelhantes e com a formação moral, educacional e psicológica de nossos futuros adultos.
Há muito a comemorar, tanto pela existência da lei como pelo empenho em lhe dar efetividade. Se a situação ainda não é a ideal, basta imaginar o que aconteceria sem a existência dessa merecidamente festejada lei e sem todas as medidas que foram adotadas pelas ONGs, pela Polícia, pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário.
*Hermes Vilchez Guerrero é professor e diretor da Faculdade de Direito da UFMG.
Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
Artigo publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico.
Foto: Defensoria Pública do Paraná