Ouro de flores anônimas sob uma nesga de céu

Por
Eugenio Jerônimo*

Em 08.08.2020

Bípedes empoleirados. É isso que somos porque a maioria de nós perdeu o hábito, o prazer, a coragem ou a capacidade financeira de morar em casas.

Eu sou um desses confinados das alturas. Ainda bem que me limito à direita com um terreno, que, mesmo em seus pobres 80m2, deixa-me ver uma nesga de espaço, incluindo uma fatia do céu e um minúsculo retângulo de mar e dando a impressão de se encontrarem mais longe os altos prédios contra os quais minha visão ricocheteia.
É preciso imaginar por que motivos sobre a área ainda não cresceram as duas dúzias de andares de um edifício. Talvez porque ela seja menor que a ambição das construtoras. Talvez porque, refém de um espólio resolvido à margem dos cartórios, não tenha documentos legalizados.
Touceiras de capim-sempre-verde, que se instalou na zona urbana trazido pelas solas das alpercatas dos camponeses pobres ou pelos bicos dos passarinhos imigrantes, expulsos do campo com a devastação das florestas. Pés de mamona — que também se diz carrapateira — , com suas folhas de grande mão espalmada e longo cano, as quais as crianças antigamente transformavam em brinquedo: as meninas, em sombrinha; os meninos, em pífano ou espingarda.
Do décimo andar, contemplo o terreno, coberto por uma vegetação provisória, ainda que haja árvores de intenção permanente ou duradoura. Touceiras de capim-sempre-verde, que se instalou na zona urbana trazido pelas solas das alpercatas dos camponeses pobres ou pelos bicos dos passarinhos imigrantes, expulsos do campo com a devastação das florestas. Pés de mamona — que também se diz carrapateira — , com suas folhas de grande mão espalmada e longo cano, as quais as crianças antigamente transformavam em brinquedo: as meninas, em sombrinha; os meninos, em pífano ou espingarda. Dois cajueiros adolescentes, ainda sem promessa dos primeiros frutos, mas já, ansiosos por conquistar espaço, espalhando-se vultosos em ramagens. Uma jaqueira, que, como é próprio da esguia linha de madeira de seus anos iniciais, nada revela da imponente Artocarpus heterophylla que poderia vir a ser.
Há outras duas árvores com aspiração a grande ou médio porte, mas minha ignorância na flora do mangue não me permite identificar.
Os claros entre os vegetais maiores autorizam o crescimento de uma plantinha rasteira, que se tece em ponto de tapete. Tenho, confesso, mais vergonha de não saber o nome dessa plantinha, que me dá simples florezinhas amarelas, atenuando minha visão chanfrada pelos espigões, que ignorar o autor de tais ou quais versos, quando isso me é perguntado da cátedra de um botequim pelos professores Onésimo Jerônimo e George Cabral. Mas me consolo acreditando que apenas duas categorias, e por dever de ofício, sabem o nome dessa espécie: os camponeses, por prático; e os botânicos, por estudiosos.
Olho agora com mais atenção as anônimas — para mim — florezinhas amarelas, como quem quer guardar-lhes para sempre a imagem. Sei que ambas as explicações que inventei para justificar a permanência desse terreno a salvo da fome imobiliária são muito frágeis. Sob medida, a ambição dos construtores adapta-se ao espaço disponível. A autenticidade de documentos não é uma verdade assim tão difícil de se criar, quando altos – altos, não nobres – interesses estão em jogo.

*Eugenio Jerônimo é escritor. Autor de Aluga-se janela para suicidas (2009, contos); Gramática do chover no Sertão (poesia, 2016); O que eu disse e o que me disseram – a improvável vida de Geraldo Freire (2017, biografia – em coautoria). Escreve aos sábados.