O encontro de Allende e Torquato Neto para desafinar o coro dos contentes nos reinos do amarelo como cajuína

Por

Mário Gouveia Júnior*

Em 04.09.2020

Aristóteles afirmou que o historiador e o poeta só se distinguem pelo fato de aquele escrever em prosa o que aconteceu enquanto este último se vale de versos para cogitar o que poderia ter acontecido. Bem sabemos, hoje em dia, que o que se registra sob a pena da História nem sempre guarda relações com a verdade, mas com versões que interessam aos grupos de poder. Do mesmo modo, podemos considerar que o poeta não só se envolve com as possibilidades do devir como também suaviza ou enfatiza histórias saídas de sua imaginação ou de sua leitura de mundo, podendo, inclusive, aproximar personagens míticos ou reais, antes nunca conciliados, numa mesma trama. Acima de tudo, estou inclinado a concordar com o poeta que diz que a sua própria identidade de poeta não se faz com versos, mas com a sua existência de poeta. Este, assim como o historiador, é incapaz de narrar sem viver; como também nenhum dos dois é capaz de viver sem narrar.

Nesses exercícios de escrita não nego a tendência que sinto no sentido de me considerar uma espécie de griot, que, tal como se faz há séculos na África Ocidental, busca preservar e transmitir histórias, conhecimentos, canções, tradições, lendas e mitos do seu povo. Identifico-me como um contador de histórias, portanto, muito consciente de minha função de lembrar à sociedade aquilo que muitos gostariam que fosse esquecido, mas, ao mesmo tempo, atento às necessidades de leveza das narrativas. E nessa busca pelo sensível e mesmo por outros prismas de contemplação do que pode haver entre o céu e a terra, entre o sono e o despertar, é que vou flertando com a poesia e com os poetas, ainda que como um voyeur. Não me atrevo às transas tão geniais que tais artistas costumam criar.

Irei, desse modo, buscar ao máximo a leveza necessária para tocar num tema – ainda que transversal – tão delicado como é o suicídio, sobretudo quando nos deparamos com o mês de setembro, que tem sido escolhido para que se intensifiquem os importantes discursos e práticas em prol de sua prevenção. Nesse sentido, apesar de considerar a importância do tema, não pretendo abordar as suas causas nem suas formas de prevenção simplesmente porque não domino essa temática. Prefiro, então, deixar os especialistas com a palavra.

Este ensaio tem três protagonistas; o presidente eleito do Chile, em 1970, Salvador Allende, o poeta teresinense Torquato Neto e o furioso Tio Sam, ávido pela manutenção de seu poder na América Latina.

Em começos da década de 1960, enquanto o jovem secundarista Torquato Neto carregava cadernos cheios de poemas e versos pelos corredores do Colégio Marista Nossa Senhora da Vitória, em Salvador, o já senador da república chilena Salvador Allende se preparava para sua terceira campanha presidencial eleitoral, da qual, assim como as duas anteriores, também não sairia vitorioso. É válido lembrar, nesse contexto, que a vitoriosa Revolução Cubana, ocorrida em 1959, no contexto da Guerra Fria (1947-1991), tinha ocasionado um contraofensiva por parte do Estados Unidos de modo a não perder o controle sobre os outros países da América Latina. Essa resposta se concretizou por meio de uma série de mecanismos de vigilância e contenção à expansão do chamado perigo vermelho; seja no território estadunidense, seja nas suas áreas/países de influência, onde buscavam, inclusive, melhorar os índices socioeconômicos.

Todavia, apesar desse conjunto de esforços, floresceram diversas manifestações, que, se não aderiam de todo às ideologias da esquerda, ao menos questionavam a até então considerada como estranha harmonização entre o conservadorismo e o neoliberalismo. Graças a esse medo disseminado midiaticamente, inclusive, é que foi não só possível como desejável por determinados grupos sociais dos países latino americanos a intervenção direta ou indireta do braço armado do Tio Sam, especialmente nos anos 60 e 70 do século XX.

Para aqueles que gostam de datas redondas, neste dia 4 de setembro comemoram-se os 50 anos da vitória de Salvador Allende nas acirradas eleições presidenciais do Chile. Allende, que iniciaria seu mandato, em novembro daquele mesmo 1970, se propunha, por vias pacíficas, a caminhar em direção à adoção de medidas de cunho socialista. Mais do que isso, não  defendia a luta armada para a conversão do Chile ao socialismo. Para tanto, utilizando-se de meios constitucionais, buscou restringir novas formações de latifúndio no Chile, bem como nacionalizar as minas de cobre do seu país, contribuindo, assim, para o fim do monopólio das empresas estrangeiras sobre essas atividades de mineração.

Torquato Neto, poucos anos antes, ao lado de Gilberto Gil e Caetano Veloso, entre outros, defendia a necessidade de uma nova visão para o Brasil, dominado pela rigidez artística e política dos anos de chumbo. Em face desse manifesto contra os modelos literários convencionais de fins dos anos 60, é que surge o Tropicalismo, movimento do qual foi dos integrantes mais ativos, como letrista de canções icônicas, ao ponto de desejar criar um pop genuinamente brasileiro, sem preconceitos de ordem estética ou de mau gosto. Defendia, ainda, uma poesia do presente, da contestação, do agir. Algo que tocava demais a ferida do inerte povo brasileiro; governado que estava por um regime de exceção e  potencializado pelo trágico ato institucional daquela famigerada sexta-feira, 13 de dezembro de 1968.

Dissolvidos por meio do exílio, ou do autoexílio, os seus principais ícones, o Tropicalismo não veria nascer a década seguinte. Isso porque, aqueles que ousaram fazer ecoar a insurgência estética, cultural ou política foram convidados, nenhum pouco gentilmente, a se retirar do país; e assim o fez Torquato Neto, só voltando ao Brasil no começo de 1970. O começo dessa nova década já denunciava uma série de internações para tratamento do alcoolismo do poeta, possivelmente proveniente da depressão em que estava mergulhado e que o fizera desfazer amizades e acusar antigos parceiros, como Edu Lobo e Glauber Rocha, de conformismo, mediocridade ou escapismo diante do quadro permitido pela ditadura civil-militar para o cenário cultural e artístico da época.

Em seus momentos de aparente lucidez – alguém saberia definir ou identificar esse estado mental de um sujeito tão vanguardista? – dedicou-se a filmes underground e a uma coluna de jornal em que disparava o que considerava ser sua justa raiva contra a Tropicália, o Cinema Novo, a Bossa Nova e mesmo seus interlocutores.

Ele, que só queria saber do que podia dar certo, definitivamente, não tinha tempo a perder.

Em novembro de 1972, Torquato Neto, que já tinha registradas outras cinco tentativas de suicídio, conseguiu se despedir do tédio e da vida, no dia seguinte às comemorações de seu 28º aniversário, com direito à última carta e também uma frase isolada em que sentenciava que “o amor é imperdoável”. O menino bobo e genial resolveu partir, ou ficar, como ele mesmo disse. Suas últimas palavras revelam a recusa em se perceber à deriva em seu próprio tempo. O sinal se fechara para as liberdades constitucionais; Hendrix sucumbira ao ópio; o sonho dos Beatles acabara; e Torquato não tinha muito o que fazer, emudecido pelas circunstâncias de se perceber em meio à morte de todos os seus amores; dos ditos e dos não-ditos, e, do mesmo modo, não correspondidos. Ele, que só queria saber do que podia dar certo, definitivamente, não tinha tempo a perder.

Allende, e todo o Chile, viveram a sua tragédia, o seu 11 de setembro quando tropas mais fiéis às causas neoliberais estadunidenses que ao seu próprio povo, colocaram o seu líder máximo no que ele mesmo chamou de “encruzilhada histórica” da qual só poderia sair às expensas da própria vida, eternamente devotada à lealdade ao povo chileno. Sim, a História julgaria os seus carrascos que o empurraram para um suicídio honroso ao invés de uma deposição e, quem sabe, posteriores humilhações. Nem Allende nem o povo chileno seriam humilhados, a depender da vontade de seu presidente. Todavia, entre 1973 e 1990, os chilenos sentiram na pele uma das mais violentas ditaduras da América Latina.

O que pode haver em comum entre “a sina do menino infeliz de Teresina” e a derrocada de um grande líder estadista? Entre Valparaíso e Teresina, entre a busca pela garantia das liberdades de ser, viver e dizer, eu vejo muitos pontos de contato, para além de seu tempo, marcado pela imposição de vontades de uns poucos em detrimento dos direitos de tantos, de muitos.

Nem Allende nem Torquato eram homens de caverna, de zonas de conforto

Gosto de pensar em Allende e Torquato muito plenos de suas capacidades e genialidades, a prosseguir com seus planos, sem estagnação, intervenção e nem deriva. A interagir numa espécie de “reino do amarelo” de João Cabral. Mas num reino em que, apesar de se conhecerem bem os dois lados desse amarelo; tanto o da abastança das coisas boas quanto da seca, da doença e do escarro, se filtre uma verdade cristalina como a mais pura cajuína. Uma verdade confessada pelo anjo louco, torto, com asas de avião: “let´s play that” até que nossa obra consiga furar o céu, ultrapassar todas as fronteiras, e desafinar o coro dos contentes. Até porque só têm vaga garantida neste coro aqueles que ainda não ousaram sair de suas cavernas em busca da verdade, que castiga, mas liberta. Nem Allende nem Torquato eram homens de caverna, de zonas de conforto. Por sua vanguarda e representatividade é que tanto historiadores quanto poetas seguirão recordando seus feitos e feitos ainda por muito mais tempo.

*Mário Gouveia Júnior é professor acadêmico, mestre em Ciência da Informação. Escreve às sextas-feiras.

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