O último sermão

Por

Jénerson Alves

Em 04.09.2020

Diante de uma pequena plateia, o Homem de voz firme e olhar amoroso antecipou: “Eu quero lhes trazer uma palavra de encorajamento, pois estamos vivendo dias difíceis”. Calmamente, folheou as páginas amareladas e repletas de anotações da Bíblia que o acompanha há tantos anos. O Livro de Deus é seu livro de cabeceira (e de coração). Encontrou o capítulo 08 da Carta Aos Romanos e leu o ‘Cântico da Vitória’. Enfatiza os versos 38 e 39: “Porque estou certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem o presente, nem o porvir, nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor”.

Alguns minutos de prédica foram suficientes para expressar a ideia central. “Tenham confiança em Deus. Poderemos ter uma semana cheia de angústias e dificuldades, mas o amor de Deus é inseparável”. A eloquência de suas palavras vinha da experiência. Não era necessário passar muito tempo para perceber: o coração do Homem ardia por Cristo. Espiritualidade como o cântico dos pássaros, mesmo com a solenidade do seu tom disciplinado. Lembrava Moisés retirando a sandália diante da sarça ardente: o sagrado é abraçado com respeito e devoção.

Dois dias após o domingo, estava uma manhã aparentemente normal. Parecia um dia como outro qualquer. Assim como tantas outras vezes, o Homem pegou sua bicicleta para realizar seus exercícios diários. Há mais de 20 anos praticava-os diariamente. “A minha esposa tem dotes culinários maravilhosos. Exercito-me para poder apreciá-los de forma saudável”, explicava, orgulhoso.

Enquanto pedalava, permitia-se que sua mente entrasse em devaneios. Visualizava projetos. Lembrava de fatos. Orava por pessoas. De repente, via-se diante de si mesmo. Era um garoto de 10 anos de idade quando percebeu que apenas o amor de Deus, que está em Cristo Jesus, poderia conduzi-lo para um lugar de sabedoria e paz. Já naquela época, afirmava: “Se eu não for pastor, quero ser militar”. Porém, Deus não se nega a realizar os sonhos dos Seus pequeninos. Tornou-se pastor e militar. Na corporação e na congregação, seriedade, diligência e comprometimento eram suas marcas principais.

Ainda sobre a bicicleta, recordou-se do grupo adolescente no qual começou a tocar violão e cantar. Foram as primeiras notas de sua voz de tenor. Neste período, conheceu a garota que viria a ser sua esposa. “No primeiro momento que a vi, meu coração me disse que eu teria de estar com ela a vida inteira”, não cansava de dizer para quem quer que fosse.

E foi lembrando do casamento, dos filhos… Aqueles bebezinhos cresceram rápido! O mais velho reflete brandura e sabedoria. O mais moço é portador de sonhos e inquietações. Os dois são talentosos e alvos de olhares e suspiros das garotas. “Fiz um bom trabalho como pai, orientando, ensinando e dando exemplo aos meus meninos”. Sim, ele sabia que era um bom pai, um bom esposo. Sua família, seu esteio, ninho e consolo.

E a igreja? Quanto amor por uma pequena comunidade de pessoas que partilham a mesma fé, as mesmas dores, os mesmos risos! Gente simples, de olhar sincero e coração puro. “Melhor do que na igreja, só o céu”, pensava. Afinal de contas, o templo é lugar de aprender mais sobre Deus, pois isso acontece em contato com o próximo. “Assim como um diamante só é lapidado por outro diamante, o ser humano melhora convivendo com outros. Por isso Deus instituiu a família. E a igreja…”

De repente, seus devaneios foram brecados. Um carro. Uma batida. Uma queda. “Que luz é essa que me ofusca os olhos?” Sim, ele sabia. A mesma luz que seguiu a vida inteira, desde quando disse “sim” em uma pequena igreja do interior de Pernambuco. É a luz de Cristo. Quem passa a vida seguindo esta luz, continuará iluminado por ela quando cruzar a eternidade. E o Homem agora repousa, abraçado pela luz que expulsa toda escuridão. “Porque estou certo de que nem a morte (…) nos poderá separar do amor de Deus”.

Dedicado a Vastir, Esaú e Asafe. Em memória do pastor Nelsino Ribeiro, da Igreja Batista Emanuel em Caruaru-PE, que faleceu na tarde da quinta-feira (03/09), após ter sido atropelado na manhã da terça-feira (1º/09).

Jénerson Alves é jornalista e membro da Academia Caruaruense de Literatura de Cordel. Escreve às sextas-feiras.

Foto destaque: Arquivo pessoal Jénerson Alves