Revisitando o Estatuto da Criança e do Adolescente (III) – Crianças, sonhos e desafios
Mirtes Cordeiro*
Em 07.09.2020
Abro o jornal e me deparo com a seguinte notícia: UNICEF: Crianças e adolescentes estão mais expostos à violência doméstica durante pandemia.
As justificativas para a notícia que provoca tamanho espanto são a intensa convivência familiar, a sobrecarga de tarefas domésticas e o trabalho em casa, ou a falta de emprego e renda, que geralmente agravam os conflitos e a convivência no seio das famílias. Sendo assim, violências que já acontecem normalmente podem ser agravadas. Diz a matéria: “Por isso, é fundamental esclarecer a sociedade sobre como pedir ajuda e denunciar, mas é preciso, também, que todos façamos um esforço extra e estejamos atentos para evitar que crianças e adolescentes sofram agressões e outros atos de violência. Ao mesmo tempo, é importante que toda a população esteja atenta, conheça os canais de denúncia e não se cale diante da violência. E cabe aos governos garantir a continuidade dos serviços de proteção à criança e ao adolescente.”
A denúncia e as preocupações são justas e necessárias, e seguem o caminho da garantia de direitos em cumprimento ao Estatuto da Criança e do Adolescente.
A minha experiência e os muitos anos de vida que tenho me impedem de não reconhecer que esforços foram feitos nos últimos 30 anos. O meu espanto é que, infelizmente, o estatuto não foi cumprido e a cadeia de proteção se rompe justamente no seu primeiro elo da corrente; a família.
A casa e a família, qualquer que seja a sua composição familiar, se constituem em espaços onde as pessoas, sobretudo as crianças e os adolescentes buscam aconchego, carinho, afeto, solidariedade e compreensão. A família responsável pela criança tem o dever primeiro de garantia da sua proteção, do provimento da sua existência e do ordenamento familiar com base nos valores humanistas, alicerces para a formação do ser humano sujeito de direitos. Pelo menos é o que busca desde o século XIX.
Crianças são cheias de sonhos e através deles desafiam a vida. Aprender a viver é um grande desafio… e crianças aprendem brincando… sob proteção dos adultos em conformidade com a natureza.
Lembro-me da minha infância cheia de brincadeiras, das mais variadas, dentro da casa, num canto da sala jogando palitos, fazendo o jogo das pedras, na rua jogando bola, pulando corda, subindo nas árvores, de esconderijo, de amarelinha, apostando corrida, passando o anel ou brincando de roda. Cada brincadeira tinha uma simbologia e era acompanhada pelos pais, alguns mais que outros. Na minha rua, numa cidade do interior do Ceará, os nossos pais em algum momento coordenavam as brincadeiras, como balançar a corda para a forma coletiva de pular, porque precisava de força física. Meu pai era alfaiate, minha mãe costureira e os outros eram pequenos comerciantes, professores, profissionais liberais, mas encontravam espaço nos seus afazeres para adubar os nossos sonhos e fortalecer o nosso crescimento. Recordo-me que meus pais mandavam fazer uma pequena roça e nos finais de semana íamos brincar na roça, observar como a plantinha produzia o milho, o feijão, alimentos típicos da nossa sobrevivência. E como a espiga ou a vagem se formavam. Na verdade, um grande piquenique. Mas um grande aprendizado. Imagino que para todos que participavam. Os pais precisam compreender os sonhos dos filhos para ajudar no desafio de aprender a viver.
Claro que a vida corria com todos os atropelos da época, a sobrevivência complicada, o fenômeno das secas gerando mais pobreza, o desenvolvimento econômico se concentrando nas grandes cidades, a política atrasada beneficiando os mais fortes. Não havia escola para todos, nem médicos à disposição em unidades de saúde, pois eram raras. E convivíamos também com alguns acidentes. Crianças quebravam a perna, caiam das árvores, meninas engravidavam, o que gerava muita confusão por conta do moralismo que historicamente domina parte das mentes dos adultos.
Acontece que é no núcleo familiar que situações também acontecem e modificam para sempre a vida de uma pessoa, deixando marcas irreparáveis em sua existência, como a violência doméstica contra a criança e o adolescente.
A violência doméstica é “ato ou omissão, praticado por pais, parentes ou responsáveis contra crianças e/ou adolescentes que, sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à vítima, implica numa transgressão do poder/dever de proteção do adulto e, por outro lado, numa coisificação da infância, isto é, numa negação do direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento”. (AZEVEDO E GUERRA, 2001)
Crianças e adolescentes são pessoas que estão em fase de desenvolvimento e por isso pode-se afirmar que um ambiente familiar hostil e desequilibrado pode afetar seriamente não só a aprendizagem como também o desenvolvimento físico, mental e emocional dessas crianças, em lugar de adubar os sonhos e favorecer o desafio na construção de suas personalidades.
Então, voltando um pouco à minha infância, não quero comparar a vida familiar de outros tempos à vida moderna que ora impacta de forma diferente a vida de ricos e pobres. Novas conjunturas socioeconômicas exigem novos parâmetros para compreensão sobre formas de vida. Sonhos e desafios estarão presentes sempre.
Repensando sobre os modos de viver, as crianças do meu mundo infantil, independente das violências existentes, estavam pautadas pela rigidez da aplicação de certos valores para formação do “homem de bem” e por alguns limites impostos pela disciplina.
O que os adultos responsáveis por uma criança ou adolescente nunca podem esquecer é que estes vêm os seus familiares – pai, mãe, avós e tios – sempre como alguém portador de afeto e poder, atributos inerentes ao ato de cuidar e proteger. Em caso de violência doméstica é fundamental acreditar na criança. Assim como, é importante prestar atenção em mudanças súbitas no seu comportamento, pois podem ser o principal indicador de que algo está errado. Como também a violência não pode ser tratada como pretexto para que a criança tenha uma boa educação e um bom caráter. A criança sempre espera proteção e afeto. Quando sofre violência acha logo que é culpada por ter feito algo errado.
Então, parece contraditório que nos dias de hoje, quando o mundo segue mudando aceleradamente – se moderniza nas formas de comunicação, a ciência avança com a inteligência artificial, mais conhecimentos circulam nas esferas educacionais – nós tenhamos que nos preocupar que as crianças sofram mais violência em suas casas, justamente o lugar onde deveriam estar mais protegidas. Ainda mais no Brasil, um país que avançou diante do mundo na sua legislação com o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Segundo Azevedo e Guerra, “As crianças vítimas de violência formam no Brasil um país chamado infância que está longe de ser risonho e franco. Nele vamos encontrar: infância pobre, vítima da violência social mais ampla; infância torturada, vítima da violência; infância fracassada, vítima da violência escolar; infância vitimada, vítima da violência doméstica (…) todas elas compõem o quadro perverso da infância violada, isto é, daquelas crianças que tem cotidianamente violados seus direitos de pessoa humana e de cidadão.”
Acrescenta o professor Hugo Monteiro, da UFRPE: “Durante o isolamento social, a situação de violência se agrava muito, porque as crianças e os adolescentes são, muitas vezes, vistas pelos adultos violentos como suas ‘propriedades’, as quais poderão ser utilizadas como quiserem, inclusive como ‘saco de pancada’, ‘pessoa na qual descarrego a minha raiva’.”
Estudos apontam que o fenômeno da violência doméstica no Brasil contra crianças e adolescentes é muito mais frequente do que se possa imaginar, e estima-se que apenas 20% dos casos de maus-tratos sejam denunciados. A notificação dos casos a órgãos competentes é uma prática pouco exercida pela comunidade e o pacto do silêncio paira trazendo danos à criança e sua família.
A Sociedade de Pediatria informa que no Brasil, todos os dias, são notificados, em média, 233 agressões de diferentes tipos (física, psicológica e tortura) contra crianças e adolescentes de até 19 anos. Boa parte tem como autores pessoas do círculo familiar e de convivência das vítimas.
Em 2017, o UNICEF informou que cerca de 300 milhões de crianças, de 2 a 4 anos, em todo o mundo, são diariamente submetidas a maus-tratos por cuidadores adultos.
A recomendação é que, ao perceberem numa dada casa crianças e/ou adolescentes sendo vítimas de violência, vizinhos denunciem por meio do número 100, da Secretaria de Direitos Humanos (SDH) do governo federal, e que tem por finalidade receber denúncias relativas a violência sexual contra crianças e adolescentes. É importante que a denúncia seja feita sem pôr ainda mais em risco a vida das vítimas. A denúncia pode ser anônima. Além disso, é possível ligar para uma Delegacia de Proteção à Criança e Adolescente (DPCA) do seu município ou estado. De modo mais direto, acionar os Conselhos Tutelares e o Conselho Estadual da Criança e do Adolescente (CEDCA) do estado e pedir ajuda.
Acredito que ainda há tempo de se inventar formas de vida onde todos possam ser respeitados como seres humanos com direito a ter direitos. Mesmo enfrentando uma pandemia como a Covid-19.
Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.
Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
Foto destaque: maesamigas.com.br
Muito interessante este artigo!
Parabéns Mirtes, especialmente por colocar em destaque a responsabilidade dos pais na formação da personalidade dos nossos futuros cidadãos!!!
Parabéns pelo excelente artigo!
Sim, apesar dos avanços com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente existem ainda muitas violações de direitos no tocante a proteção integral das crianças e dos adolescentes.
Muito bom o artigo de Mirtes, traz para o foco da discussão o papel da família e a violação de direitos às crianças. Repensar a proteção das crianças é uma condição imposta pela contemporaneidade.