SALA DE CINEMA – ‘Longa Jornada Noite Adentro’: o cinema guiado por sonhos e memórias
Pedro H. Azevedo*
Em 13.09.2020
“A diferença entre os filmes e as memórias é que os filmes sempre são falsos. São compostos de uma série de cenas. Mas memórias misturam verdade e mentira, elas aparecem e desaparecem diante dos nossos olhos.” É o que Luo Hongwu, o protagonista de Longa Jornada Noite Adentro vivido por Huang Jue, diz em um certo momento e que revela já muito do próprio filme. O segundo trabalho de Bi Gan, jovem e promissor cineasta chinês, é uma viagem para dentro das memórias, sonhos e traumas de Luo Hongwu feita de maneira inovadora e extremamente virtuosa que revela um paralelo entre os mundos subjetivos que criamos em nossa mente e o universo ficcional que o cinema fabrica.
O filme de 2018 é um romance neo-noir com toques oníricos que inicia apresentando o seu protagonista nos falando sobre sonhos e memórias e como eles acabam sempre convergindo para a figura de Wan Qiwen (Tang Wei), seu grande amor, que desapareceu há mais de uma década e que ele, após se deparar com uma pista do seu sumiço, tenta reencontrá-la.
Partindo dessa premissa, Longa Jornada Noite Adentro surpreende de cara pelo apuro técnico que Bi Gan demonstra ter e pelo domínio que ele passa com as ousadas escolhas narrativas tomadas, sendo a principal delas dividir seu filme em duas partes distintas de pouco mais de uma hora cada.
A primeira nos mostra Luo Hongwu seguindo os rastros de sua amada enquanto relembra os principais momentos que viveu com ela. As pistas vão levando ele para outras pessoas que conviveram com a misteriosa e sedutora Wan Qiwen e que tentam ajudá-lo a reencontrá-la. Nessa parte, o filme utiliza inicialmente uma estrutura narrativa que se desenvolve como um mosaico que vai se formando por meio de memórias que surgem não de forma lógica e organizada, mas sim de forma anacrônica e fragmentada, guiadas pelos pensamentos que Hongwu tem, como em um fluxo de consciência. O filme abusa de elementos do neo-noir — a iluminação bem marcante e com bastante néon, a trilha sonora soturna e etérea, a premissa de investigação em um mundo de criminosos, uma femme fatale, a chuva constante e desoladora, o ritmo narrativo mais lento, a narração em off de um protagonista introspectivo — para criar um senso de mistério dentro da narrativa que transita entre David Lynch e Wong Kar-Wai. A esse estilo neo-noir e essa estrutura mais fragmentada somam-se alguns elementos simbólicos: temos os relógios quebrados que desorientam o tempo; a fumaça dos cigarros evocando uma fantasmagoria; os espelhos, objetos que guardam um universo virtual dentro de si; e um misterioso livro verde que guarda um feitiço de amor dentro dele. A combinação de tudo isso cria uma atmosfera onírica que vai ser concretizada na segunda parte.
Se na primeira parte temos uma estrutura que fragmenta a realidade e a memória, o passado e o presente, a segunda parte vai partir para o oposto, sendo formada por uma sequência de uma hora totalmente contínua, sem cortes. Bi Gan realiza um incrível plano-sequência estupidamente complexo em contraste a picotada primeira parte. Além disso, diferente da primeira parte, esse plano-sequência é em 3D, e claro que a versão 3D só foi possível assistir no cinema, mas até assistindo em 2D a mudança é perceptível justamente porque Bi Gan, mostrando entender do funcionamento do 3D, aumenta a profundidade de campo nessa segunda parte para que possamos perceber o cenário de forma mais realista e una, enquanto que na primeira a profundidade de campo era bem pequena, isolando os elementos nas cenas.
Como já dito, toda a atmosfera onírica construída na primeira parte é concretizada na segunda parte. Ela se passa toda dentro da cabeça do protagonista, é um longo sonho. É como se a primeira metade do filme fosse uma introdução para o que vamos ver na segunda parte, a entrada do título do filme marcando o início da segunda parte e a maneira como ela acontece (o protagonista senta na poltrona do cinema para assistir a um filme e coloca os óculos 3D ao mesmo tempo que nós, espectadores, colocaríamos se estivéssemos vendo o filme no cinema) ajuda a criar esse sentimento de que o filme começou de verdade depois de mais de uma hora de duração. Uma escolha bem ousada.
Uma boa analogia seria comparar a primeira parte do filme com o estado mental que temos quando estamos prestes a dormir e o consciente e inconsciente parecem estar funcionando ao mesmo tempo deixando nossa mente confusa e sem muito foco para em seguida entrarmos no mundo dos sonhos, onde o inconsciente domina e impõe sua própria lógica e leis, o que explicaria a primeira parte mais confusa e a segunda parte mais clara, contínua e também mais fantástica.
A relação entre o mundo ficcional do cinema e os mundos que habitamos em nossos sonhos e memórias é algo que vem sendo explorado desde o início da história do cinema. O psicólogo Hugo Münsterberg em um dos primeiros escritos sobre a teoria do cinema, em 1916, já dizia que “o cinema, ao invés de obedecer às leis do mundo exterior, obedece às da mente.” (XAVIER, Ismail. A Experiência do Cinema (antologia)/organização Ismail Xavier. São Paulo, SP: Paz e Terra, 2018). E é exatamente obedecer às leis da mente o que Bi Gan faz de maneira radical no seu filme. Mais do que tentar criar um mundo ficcional com base no mundo real em que vivemos, Gan se preocupa em criar o mundo interior do seu personagem principal.
A lógica narrativa da primeira parte se comporta exatamente como um fluxo de consciência cinematográfico, com a história se desenvolvendo não por meio de uma direção didática, mas por meio de uma lógica puramente associativa. É uma foto que traz à tona um acontecimento do passado, que por sua vez puxa uma outra passagem da vida de Hongwu e assim vai indo tornando a história bem difícil de ser plenamente compreendida.
Na segunda parte, o filme realiza uma dimensão de sonho através de um fluxo constante que reformula os planos e as perspectivas, preservando sempre uma unidade sequencial que não se abala com o fantástico e que segue regras próprias que possibilitam coisas inimagináveis.
Para alguns, o filme pode ser visto como uma obra demasiadamente estética, “arte pela arte”, e talvez ela até seja, mas consigo enxergar uma jornada interessante que possui uma certa moral.
(ESSE PARÁGRAFO CONTÉM SPOILERS) Resumidamente, vemos Hongwu como um homem refém do seu passado. Logo de início ele diz que suas memórias são como pedras que o impedem de voar. É interessante como a primeira parte, que ocorre no “mundo real”, a que vemos ele tentando encontrar sua mulher amada acaba não dando em muita coisa, já que ele não a encontra nunca. Na segunda parte, dentro de seu sonho todas as figuras ausentes (a mãe, a sua amada, o seu amigo que morreu e o seu possível filho) de sua vida estão presentes, conseguimos compreender melhor os seus traumas e há até uma certa conciliação dele com tudo isso. É possível entender essa jornada interna, que o filme coloca como a parte mais importante, como a única forma de superação dos traumas do passado do personagem ou pelo menos como o ponto inicial para a resolução dos problemas que ele lida, algo como ser impossível resolver sua relação com o mundo antes de resolver sua relação consigo mesmo.
Por possuir uma estrutura peculiar, Longa Jornada Noite Adentro acaba sendo um filme não tão fácil de digerir. O ritmo mais lento e a falta de explicações pode facilmente entediar o espectador, mas para os que apreciam uma obra que explora ao máximo os aspectos audiovisuais com maestria esse é um filme que vale a pena ser visto.
Longa Jornada Noite Adentro está disponível na Netflix. Para conferir clique aqui.
*Pedro H. Azevedo é concluinte de Engenharia Mecânica. Escreve e administra a página Um Toque de Cinema no Instagram. Escreve aos domingos.
Foto: imdb.com
Muito top esse seu texto Pedro! Gostei muito de ler. Sim, o filme pode ser um ótimo condutor de memórias e sonhos, pois ao assistir a um filme podemos ser levados a rememorar, sonhar, reelaborar coisas, situações, momentos como também refazer novas memórias. Muito legal, confesso que não tinha pensado nessa articulação do filme como espaço de memórias e sonhos!Show!
Obrigado pelo comentário, Vera! E que bom que você gostou de ler o texto. Fico feliz de saber disso!