A razão do silêncio
Perguntamos a quatro atletas olímpicos: por que o esportista negro brasileiro se cala em meio aos protestos?
Colaboração para o UOL, em São Paulo
–A violência contra negros no Brasil ou nos Estados Unidos, ou em qualquer parte do mundo, é inconcebível. Inaceitável. Mas os esportistas norte-americanos sempre se manifestam, tomando a frente nos protestos e em atitudes contrárias ao racismo.
A morte de George Floyd em ação policial acontecida em Minneapolis sacode as ruas. E vários esportistas de destaque fizeram declarações fortes, como Michael Jordan e Tiger Woods. Outros tomaram atitudes, como o pugilista Floyd Mayweather Junior, que se prontificou a arcar com as despesas do funeral do segurança negro que chegou a jogar basquete na cidade.
No Brasil, muitos consideram as reações tímidas demais quando acontece uma tragédia. E elas, infelizmente, são frequentes por aqui. Que ídolo esportivo se manifestou na recente e terrível ação policial que resultou na morte do menino João Pedro, de 15 anos, em Niterói?
Por que essa indiferença ocorre
Fomos ouvir quatro atletas olímpicos que se destacaram em defesa do esporte brasileiro em várias modalidades. São ídolos e exemplos para os jovens. A levantadora de peso Beth Jorge, o lutador de taekwondo Diogo Silva, a pivô de basquete Kelly e o velocista Nelson Rocha dos Santos. Todos negros. Corajosos. E que protestam ao emitir opinião sobre um assunto tão violento e ligado ao cotidiano da juventude negra em nosso país. São opiniões que se completam.
KELLY – A pivô Kelly disputou quatro olimpíadas e jogou em duas temporadas no basquete norte-americano (em Seattle e Detroit) e tem muita clareza sobre a questão. “Eu estava falando sobre esse assunto hoje mesmo: o atleta brasileiro não se manifesta porque criou-se um mito em nosso esporte. Uma orientação dos patrocinadores para que a gente não se envolva em assuntos polêmicos”.
Para a jogadora, “o atleta brasileiro de elite tem medo de se expor e perder o emprego”. “Já nos Estados Unidos, pelo menos no basquete, as meninas se expunham e discutiam todos os assuntos no próprio vestiário. Não eram vaquinhas de presépio. E os dirigentes tentavam resolver os problemas e ouvir o atleta. Aqui o atleta é quase uma propriedade do clube e tem receio de manifestar opiniões. Mas acontece que isso mudou. Está mudando. E os atletas ainda não entenderam isso”.
“Eu mesma participei de uma campanha contra o feminicídio. Hoje, busca-se o atleta que se envolve em assuntos polêmicos. É super importante para os jovens que se espelham nos ídolos que nós façamos mais ações. É por isso que vamos fazer nesta quinta-feira uma reunião pelo ‘zoom’ para a discussão da criação de um sindicato de atletas olímpicos. Vamos criar várias comissões e uma delas será o comitê afrodescendente. Estamos cansadas de pertencer à elite do esporte e não fazer efetivamente nada em prol de pessoas em situação de risco e expostas à violência. Não é preciso ter um discurso violento, mas é necessário se posicionar. Fazer protesto”.
BETH JORGE – A levantadora de peso Beth Jorge é uma guerreira do esporte. Esteve na Olimpíada de Sydney aos 43 anos. Hoje é treinadora, estudante de Educação Física e não se esconde quando o assunto é a violência contra a juventude negra.
“Para os negros brasileiros, independentemente da nossa posição social, as coisas são muito difíceis devido à política branca do país. E os negros com os quais deveríamos contar ainda são piores. Maltratam seu próprio povo. Exemplo? O chefe da associação dos quilombolas. Veja a atitude dele com os negros. Há muitos anos atrás, eu vi uma matéria com o Pelé em que a repórter perguntou: ‘Por que você se casou com uma mulher branca?’ E ele respondeu: ‘Para que os meus filhos não sofressem o preconceito que eu sofri'”.
Bethe prossegue: “Eu digo que nós, os negros do Brasil, somos medrosos. Somos assassinados e a Justiça brasileira nem sequer se dá ao trabalho de investigar quem é o autor do crime. Fingem que começam a investigação e depois são arquivados os processos de investigação. Como está ocorrendo com o caso Marielle. Então, nos acovardamos para que a nossa família não sofra uma discriminação maior ainda. Um preconceito maior. É puro medo. Por não termos união. Essa é a minha opinião”.
NELSINHO ROCHA DOS SANTOS – Nelsinho Rocha dos Santos, 68 anos, é professor no Rio de Janeiro, técnico de atletismo e atleta dos 100 metros e do revezamento 4×100 nas Olimpíadas de Moscou-1980 e de Los Angeles-1984. Nelsinho tem plena consciência do que é o racismo em nosso país.
“Essa questão toda remonta à história. E essa história nos mostra que o massacre sofrido ao longo de séculos ainda não acabou. Por mais que tenhamos voz e representatividade, a gente se ressente de um sustentáculo educacional para identificar a relevância dessas questões. A gente é vítima desse preconceito até hoje. Por outro lado, precisamos nos organizar nesse sentido. Ter organização de ideias. Nós, atletas, vivemos muito separados por esporte. Eu mesmo senti isso no meu tempo de competidor nas viagens com as delegações. Isso apequena, e muito, a nossa voz. Não há uma união. E as pessoas vão se cansando de falar e não ter eco em lugar nenhum. A gente precisa ser mais incisivo, dar depoimentos, fazer a nossa opinião chegar às casas. Sempre vai ser alguém mais a te ouvir”.
Ele usa seu neto de 14 anos, atleta como ele, como exemplo: “Ele tem 1,78m. Ele é imenso. E eu fico com medo das coisas que acontecem com os jovens. Falo para ele tirar o boné quando estiver perto de um policial. Falo para tomar cuidado no ônibus, para não ficar no fundo. O caso do menino João Pedro, que morreu dentro de casa… Eu senti como se fosse o meu neto. É uma coisa que nunca acaba. Todo dia morre um jovem aqui no Rio. Os negros foram jogados em guetos. E quando tentam se levantar são massacrados. Mas existem os jovens que resistem. Existem os coletivos, apesar de que muita gente debocha.
“Racismo no Brasil é o mais sórdido do mundo. Em nosso país, o racismo vem pelas sombras, pelas trevas. Já nos Estados Unidos, os negros mais bem sucedidos são em maior número. Eles têm com se manifestar. Tem uma mídia para se comunicar. Aqui, o negro se cala por medo de ser atingido mais à frente pela política escravocrata que ainda persiste. A política que manda o negro ficar quietinho no seu canto. Ninguém aqui vai ter a atitude do britânico Lewis Hamilton que pediu que os pilotos de F-1 se manifestassem sobre o caso de Minneapolis”.
DIOGO SILVA – Diogo Silva é um lutador. Dentro e fora dos ginásios esportivos. Denunciou maus dirigentes e lutou o bom combate no taekwondo. Esteve na Olimpíada de Atenas, em 2004, quando ficou perto de uma medalha. “Eu tenho estudado muito essa questão da repercussão desses casos de violência e racismo. Algumas pessoas de destaque, principalmente no campo esportivo, se pronunciam apenas no ato e depois não tocam mais no assunto. A diferença entre o negro brasileiro e o americano é que nos Estados Unidos a democracia é mais antiga. E o americano negro tem cem por cento de certeza de que não é aceito pelo sistema. E já não tenta se encaixar”.
Ele usa como exemplo um período de treinamento nos EUA: “Na época, estava treinando e competindo no Texas e vi que o branco ocupa um espaço e o negro ocupa outro. É um lá e o outro aqui. Então, o negro se organiza e se estrutura. É o tal do ‘nós por nós’. Eles já estão nessa há muito tempo. É um apartheid declarado. No Brasil, não. Estamos naquela da miscigenação. Não há esse comentário de quem somos na escola, nem em casa. O pai e a mãe não comentam sobre o assunto com os filhos. E a gente só vai perceber o racismo quando alguém te ofende”.
“Lá, o pai é preto, a mãe é preta e você é isso. O assunto é tratado dentro de casa. Aqui, o que você é? Pardo. Não sabe se defender. O que é pardo? Lá nos Estados Unidos, saíram em protesto pela morte do Floyd vários atletas que são ídolos do país. O Lebron James é o maior astro da NBA. Tem o maior salário do esporte. Aqui no Brasil quem seria esse esportista? Seria o Neymar. Mas eu pergunto se dá para comparar essa pessoa que sabe quem é com quem não sabe quem ela é? Nós aqui só temos jogador de futebol com essa representatividade, mas eles ficaram lá atrás, com a Democracia Corintiana, com o Reinaldo e o Júnior na década de 80. Lá, eles sabem que não são aceitos e pronto. Fazem por eles mesmos. Aqui a gente quer ser aceito”.
Como Kelly, Beth e Nelsinho, ele também diz que existe o medo de represália. “Quem se manifesta aqui no Brasil contra a violência fica na corda bamba, sabe que em algum momento eles vão tirar alguma coisa de você, porque não tem gestor, não tem dirigente, não tem empresário que vai ficar do seu lado. Se o bicho pegar, quem vai me defender? Então, fica na consciência que se ele se pronunciar contra um ato de violência vai acabar se dando mal. Além do mais, a morte do jovem negro já está incorporada à cultura do brasileiro. Morrem muitos jovens negros. Então o atleta acaba assimilando como algo normal. Claro que tem muito esportista que não está nem aí com a questão. E outra coisa é que o futebolista negro milionário acaba se igualando na sociedade e então para ele não importa mais a cor”.