O fim do amor pelo desaparecimento do outro

Por

Nelino Azevedo de Mendonça*

Em 23.09.2020

A devastadora desqualificação do outro através do insistente processo de homogeneização na sociedade vai gerando um nivelamento danoso porque iguala tudo e todos. Nessa condição, a diferença deve ser eliminada a todo custo. A sociedade do nivelamento tende a um constante processo de comparação. Tudo deve ser comparado em nome da padronização, pois, desse modo é possível atender de forma igual a todas as pessoas, na medida em que se passa a consumir igualmente as mesmas coisas, os mesmos gostos, a mesma moda, os mesmos desejos. A palavra de ordem, portanto, é eliminar toda e qualquer diferença. É desse modo que a sociedade do nivelamento vai se instaurando.

A consequência disso tudo é a eliminação do outro. Esse modo estabelecido na sociedade vai gradativamente fazendo com que o outro desapareça. O pior nisso é que não nos damos conta desse desaparecimento porque cada vez mais estamos focando toda a nossa atenção em nós mesmos. Esse é um processo de narcisificação da sociedade. Desse modo, o sujeito mergulhado nesse processo entra numa rota de desqualificação de si e outro ser humano já não se constitui como referência para ele, pois esse sujeito se desqualifica na sua humanidade na medida em que perde as referências da presença do seu semelhante. Esse sujeito passa a perceber somente a si mesmo, e o outro passa a ser cada vez mais uma presença opaca e distante, até sumir completamente.

A perda completa da alteridade nesse contexto é fatalmente o pior dos males nesse modo de vida e de sociedade. Esse sujeito mergulhado em si mesmo assume a sua presença no mundo através de um amor interior que não se expande para fora de si. Como afirma Han, – em seu livro Agonia do Eros, Vozes – o sujeito narcísico “não consegue perceber o outro em sua alteridade e reconhecer essa alteridade” (2017, p. 10). Um amor que se aprisiona em si, personificando-se como uma expressão narcísica de si mesmo, nunca pode ser entendido como amor próprio. É um engano vê-lo dessa forma, pois uma das mais fortes características do amor próprio é o reconhecimento e a entrega de si mesmo para o outro. O amor verdadeiro só se completa no outro. Por isso ele gera alteridade.

O que estamos vivenciando nessa sociedade é a decretação do fim do amor. E, sinceramente, não há sutileza nisso, mesmo que aos olhos de muitos, isso ainda não seja perceptível. Os adoecimentos que se expandem na sociedade, as violências que se multiplicam, os crescentes modos de destruição do planeta e da vida humana são ratificações de que o amor está em erosão. Han diz que “A depressão é uma enfermidade narcísica. O que leva à depressão é uma relação consigo mesmo exageradamente sobrecarregada e pautada num controle exagerado e doentio” (2017, p.10). Tudo isso é fruto de uma sociedade que cada vez mais se organiza pela lógica de que temos que aprender a competir com o outro. O outro tem importância apenas como adversário, como oponente e representa um perigo iminente que ameaça constantemente as nossas oportunidades e o nosso lugar de sucesso. Por isso é preciso eliminá-lo.

Não há lugar para o amor nessa sociedade consumista e niveladora. O amor próprio torna-se pleno somente pelo encontro. É no encontro que o amor se fortalece, se corporifica e se expande. O amor narcísico, ao contrário, gera um movimento para dentro, retrai-se num encolher adoecedor e se afoga em seu próprio amor. Certamente, esse amor narcísico é adoecedor, portanto, já não é mais amor, apenas uma profunda expressão do desamor. Esse desamor narcísico, disfarçado de amor próprio, elimina qualquer possibilidade de alteridade, por isso, nessa condição, torna-se impossível amar o que está para além de si. Aliás, de modo geral, qualquer ação que elimine a alteridade, não passa de um ato de posse e de consumação do outro e, portanto, jamais será um ato de amor.

A eliminação do outro representa a eliminação do amor. Ninguém ama se não for pelo encontro, pela presença, pelo convívio com seus semelhantes e com o mundo. Por isso não podemos abrir mão de estabelecermos convivências plenas de afeto, de cuidado e de carinho pelo outro. O reconhecimento e o fortalecimento dos laços que nos atam aos outros seres humanos devem ser preservados como um tesouro que não guarda em si valores materiais, mas que envolve e cuida do que há de mais profundo, mais bonito e curador na relação humana: o amor.

*Nelino Azevedo de Mendonça é professor, mestre em educação e membro da Academia Cabense de Letras. Escreve às quartas-feiras.

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