Douglas Menezes, um operário das letras

Por

José Ambrósio dos Santos

Em 23.09.2020

Ele dedicou grande parte da sua vida a fazer aquilo que mais gostava: ensinar e escrever, principalmente sobre a sua terra natal, Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco, onde nasceu no dia 23 de setembro de 1954. E como ele conhecia a sua terra, onde sempre viveu, e a sua gente, matérias-primas para um não parar de escrever e descrever com intenso realismo o cotidiano da cidade que o viu nascer, crescer e se tornar um dos seus filhos mais ilustres. Foram mais de 30 anos de magistério, nove livros publicados e uma quantidade de cronicas, poesias, contos, artigos que nem a sua esposa Débora sabe quantificar com exatidão. “Ele escrevia todos os dias”, resumiu ontem Débora, na véspera do aniversário de Douglas Menezes de Oliveira, que pela primeira vez em décadas não se preparava para comemorar festivamente a data.

Professor, poeta, escritor, um operário das letras, Douglas Menezes completaria hoje 67 anos de idade, mas se despediu da cidade e da gente que tanto amou no dia 26 de fevereiro deste ano, na Quarta-feira de Cinzas, horas depois de se encontrar com amigos foliões, no centro da cidade. Com sua simplicidade quase ‘franciscana’, literalmente registrou com muita grandeza o seu nome na história de uma cidade com muitas histórias para contar.

A narrativa que empregava em suas crônicas em especial, nos fazia passear pela cidade sentindo os cheiros, ouvindo os ruídos das ruas, das avenidas, dos becos, das ladeiras. Nos fazia conhecer e reencontrar personagens, inclusive muitos anônimos, quase invisíveis, mas que eram enxergados pelo olhar arguto do cronista que transbordava sensibilidade, talento, maturidade e solidariedade, constituindo-se no maior cronista das últimas três ou quatro décadas do Cabo de Santo Agostinho, como muitos consideram.

Douglas Menezes autografando seu último livro, Uma canção por favor, em 08..08.2019

 

 

Seu trabalho está imortalizado. O que escreveu será lido e relido todos os dias por gerações, por quem queira saber da cidade e da sua gente. Como a garotinha de nove anos de idade que ganhou de presente o seu último livro, Uma canção, por favor – lançado na noite do dia 08 de agosto do ano passado – que o tem como se tem a uma Bíblia, como testemunhou seu tio – que não consegui identificar -, ao final do sepultamento, no Cemitério de são José, no crepúsculo do dia 27 de fevereiro.

Como bem disse o artista plástico e escritor Ivan Marinho, da Academia Cabense de Letras (ACL), também nos últimos minutos da despedida, “Douglas Menezes vive. Seu legado é rico, abrangente, intenso e grande.” Como grande será a responsabilidade de quem vier a assumir a cadeira de número 11 da ACL, que ele valorizou e honrou até o último instante.

Douglas com a família. A esposa Débora, o filho Caio e as filhas Juliana e Anabele

 

Sétimo de dez filhos do casal Antonino José de Oliveira e Maria Tereza Menezes de Oliveira, Douglas Menezes lançou o seu primeiro livro em 1982, O último ritual. Na sua estante preservada e nas de muita gente, além de bibliotecas, constam ainda Voo para a ternura, Intratextualidade em Graciliano Ramos, Análise sintática sem dificuldade, Redação essencial, Lua de pedra, Graciliano Ramos: a visão de mundo do cidadão-escritor, Cidade do Cabo de Santo Agostinho, uma declaração de amor, e o último, Uma canção, por favor.

Livros publicados por Douglas Menezes

 

O prefácio do livro Uma canção, por favor, assinado pelo professor e membro da ACL Nelino Azevedo de Mendonça, traduz bem a sensibilidade sempre presente nos trabalhos de Douglas Menezes. Nelino inicia o prefácio citando o poeta russo Vladimir Maiakóviski:

o coração tem moradia certa,

fica bem no meio do peito,

mas comigo a anatomia ficou louca,

sou todo coração.

E prossegue Nelino: Assim é a crônica-poesia de Douglas Menezes, coração, completamente coração. A sua prosa poética parece despretensiosamente ter assumido a missão de dizer à sua cidade que ela tem histórias e que são memórias vivas que não podem se perder nos descaminhos e desfaçatez do esquecimento. Por isso, assume a tarefa de “Recordar”, que por sua vez, significa “trazer de novo ao coração.”

As 46 crônicas constantes em Uma canção, por favor falam muito do seu amor e sentimento de pertencimento à cidade de Cabo de Santo Agostinho. Quanta poesia em cada linha. Em A menina e o sol, página 35, uma bela demonstração: Isabel anuncia o sol a cada dia de noite. Como se pintasse um quadro amarelo vivo num papel quase branco, de um caderno amarelado. Isabel não tem um caderno branco e nem escolhe outras cores, porque seu lápis só possui a cor do sol. E em A rua fala, página 39: Dona Regina cheirava a erva-doce. Mãe de Júlia, esposa de seu Avelino, porteiro do cine Santo Antônio, ensinou-me as  primeiras letras. Lembro-me dela  principalmente por causa das manhãs tristes de chuva, do gostoso cheiro da minha primeira mestra e do aroma visual daquele pomar típico da velha Rua da Matriz.

Na página 51, a crônica As cadeiras na calçada é outra grande demonstração da inquietação do cronista que não parava de escrever sobre a sua gente. E por que essa febre agora? Essa de repente vontade de se contar? A ninguém interessa os meus fantasmas. Os fantasmas são meus e as cadeiras estão lá, da Matriz a Santo Amaro. Dona Tarcila à janela e seu Esmeraldino pigarreando com o pai do menino, falando do bangue-bangue e dizendo da política da província. São pigarros de dignidade no silêncio da noite de estrelas e da lua cheia de um lugar que já morreu. A minha cidade fantasma que  insisto em reviver. As cadeiras estão na calçada.

Douglas Menezes publicou a sua última crônica no dia 26 de fevereiro deste ano, na Quarta-feira de Cinzas. Segue a crônica:

Felizmente a vida continua

Por Douglas Menezes

Em 26.02.2020

Pois novamente a ilusão acaba e se renova para um novo carnaval. Todo ano tem. Todo ano vem, igual e diferente. O amanhecer traz a novidade de um novo momento, como o por do sol prenuncia a manhã chegante. A natureza faz isto para que a gente se renove ou se mantenha rotineiro, feliz ou não, a quarta-feira é igual a outra qualquer. Acho mesmo, que nem tão ingrata assim.

Pois, para o bem ou para o mal, a vida continua, com milhões lutando pela sobrevivência, sem a chance de alguns, a festejarem  o carnaval da abastança, muitas vezes, conseguida através da esperteza e da exploração dos mais humildes.

Também eu acho que carecemos de ilusão. Ela traz poesia à vida, sustenta os sonhos, ajuda aguentar os trancos da existência pesada de uma dureza a não se suportar, muita vez. Por isso, um pouco de carnaval prolonga a utopia de que se é feliz, ao menos uns dias por ano. Daí a dor ao terminar esse reinado de fantasia. Quando o pobre se sente elite, rei e rainha.

Enfim, amanhã as cinzas estarão dissipadas na quinta-feira cotidiana, com os foliões fazendo as contas juvenis, aguardando de novo o momento de se virar criança, na busca do próximo carnaval de ilusões e sonhos e cinzas injustas.

Quarta-feira de Cinzas, 26 de fevereiro de 2020.