O dilema das redes entre a utopia e a ignorância

Por

Mário Gouveia Júnior*

Em 25.09.2020

Em 1996, Gilberto Gil compôs canção “Pela Internet”, que, além de ser a primeira música lançada e transmitida em tempo real através da internet no Brasil, tinha o propósito de homenagear as oito décadas contadas da gravação do primeiro samba no Brasil, “Pelo Telefone”, de Donga e Mauro Almeida. Nos versos mais famosos deste samba vanguardista “o chefe da polícia pelo telefone mandava avisar que na Carioca tinha uma roleta para se jogar”. A tecnologia de comunicação das mais avançadas à época se fazia presente neste samba de 1916.

No samba high-tec de Gil de fins de século XX, por sua vez, enquanto o chefe da polícia já usava celular para falar de videopôquer, o doce bárbaro também queria saber com quantos gigabytes se fazia uma jangada que pudesse velejar no infomar, que prometia calmarias e vantagens múltiplas aos seus navegantes. Queria, ainda, entrar na rede e promover debates, juntar pessoas e ideias via internet. Bons ventos pareciam empurrar essa jangada rumo ao desconhecido.

Entre 1916 e 1996, é fato que muitas coisas mudaram, muitas tecnologias nos foram apresentadas, ferramentas foram aprimoradas por meio dos maravilhosos processos de inovação, mas à medida que avançamos no universo das realidades conectadas, percebemos que os intervalos de tempo de verdadeiras revoluções nas formas de se comunicar se encurtaram consideravelmente. Tanto é que, recentemente, quando fez “Pela Internet 2”, Gil percebeu a necessidade de atualizar as suas impressões sobre a web. Nessa canção mostra-se admirado pela velocidade de seu veleiro a terabites; maravilhado pelas novas invenções de cada dia; preso na rede de aplicativos, que nem peixe pescado, com tudo muito bem bolado, por entre nuvens, drones, likes e iPhones.

Somos peixes pescados nas redes sociais, como pensa Gil? Estaríamos enfeitiçados, não importando aonde quer que vamos – como na música brilhantemente interpretada por Nina Simone, “I put a speel on you” – ao termos aberto essa espécie de caixa de Pandora que representa a Internet?

O documentário “O dilema das redes”, que tem como diretor Jeff Orlowski, aborda as relações que envolvem tecnologia, informação e sociedade, sobretudo as relações entre a saúde mental e o uso de redes sociais; as redes sociais, não como ferramentas de lazer e entretenimento, mas como dispositivos estratégicos que competem pela atenção dos usuários; e como o Estado, ou qualquer outra entidade disposta a pagar, consegue influenciar pessoas por meio de notícias falsas. Seguimos da era da informação para a era da desinformação.

No seu início, surge uma citação de um dos mais importantes escritores de tragédias gregas; Sófocles dizia que “nada grandioso entre na vida das pessoas sem uma maldição”. Isso pode ser traduzido pelo entendimento de que toda grande oportunidade que é oferecida como vantagem, como canto de sereia, pode ocultar terríveis efeitos colaterais.

Neste caso, por um lado, já que ninguém é uma ilha, nós temos necessidades de nos conectarmos com outros, viver em comunidades, achar companheiros e companheiras e propagar a espécie. Sem dúvida, as redes sociais, desde que se apresentaram para as pessoas, dispõem de um eficiente potencial de atração e adesão, proporcionando, inclusive, uma reintegração de membros perdidos de familiares ou de grupos de amigos, e puderam aproximar o distante.

Sob outro ponto de vista, alguns efeitos colaterais foram colocados em segundo plano. Um deles trata do aspecto viciante, intencionalmente elaborado, que os aplicativos exercem sobre as pessoas. E porque essa tendência é criteriosamente provocada? Pelo fato de que as empresas de tecnologia deixaram de vender hardwares e softwares e passaram a se concentrar em vender usuários. Como estes não pagam pelos produtos que usam, os anunciantes pagam; o que se traduz na máxima de que “se você não está pagando pelo produto, o produto é você!”.

O objetivo é manter as pessoas cada vez mais presas às telas, dedicando cada vez mais tempo, o que acaba por operar uma mudança gradual, leve e imperceptível em nosso comportamento e percepção de que somos o produto. É, então, aos poucos que modificamos o que fazemos, como pensamos, quem somos, para onde direcionamos nossas atenções e quais são as necessidades e os desejos de consumir.

Quando duas pessoas se conectam, essa conexão só é possível porque um terceiro ente – uma empresa anunciante – está pagando para manipular aquelas duas pessoas em busca de lucro. É esse processo que gera o dinheiro para aquelas empresas que investem em nosso entretenimento. É o capitalismo de vigilância que joga sempre para vencer, para lucrar. Não à toa as empresas de internet são as mais ricas da história da humanidade.

Mas não é legítimo pensar que as grandes empresas tecnológicas meramente nos vendem ou vendem as nossas informações para as outras empresas interessadas em fazer vendas e lucrar. Na verdade, são os nossos dados que são utilizados para construir modelos e algoritmos que preveem nossas ações. Numa palavra, tudo o que assistimos, curtimos, compartilhamos, baixamos, usamos gratuitamente está sendo gravado e age no sentido de compilar nosso perfil. Damos diariamente muito mais informações do que podemos imaginar. O nosso waze ou uber revela onde moramos, onde trabalhamos, para onde viajamos; nosso ifood, o que comemos ou desejamos comer; nosso youtube revela quais os conteúdos de lazer e entretenimento de que gostamos; nossas redes sociais, de quem somos amigos, o que curtimos, o que odiamos, o que pensamos, como estamos nos sentindo…

O que mais chama atenção no documentário é o fato de que em dado momento, nos afastamos de um ambiente de tecnologia que oferecia ferramentas para um ambiente de tecnologia viciante e manipulador. Isso porque as redes sociais não são uma ferramenta que espera, totalmente isenta de vontades, para ser usada, como um isqueiro ou um abridor de vinho; elas têm seus próprios objetivos e meios de obtê-los, contando com a exploração do psicológico de seus usuários contra eles mesmos. Tais sistemas não respeitam tempo ou ética quando se trata de manter o usuário conectado; fazer com que ele convide o máximo de amigos; e consuma as propagandas.

Ser visto e ser curtido, o biscoito behaviorista, apenas soam como sinônimo de ser socialmente aceito; depender da constante aprovação dos seus pares nas redes sociais acaba por revelar um ciclo vicioso capaz de adoecer muitas mentes. Ainda mais se essas mentes forem mais jovens. No fim das contas, Edward Tufte tem razão: os softwares são como drogas, afinal apenas duas indústrias chamam seus clientes de usuários, as de softwares e as de narcóticos. Até mesmo alguns dos desenvolvedores desses conteúdos viciantes provaram do próprio veneno. O que faz lembrar a brilhante máxima de Tim Maia, aqui sintetizada e adaptada a todos os públicos: “algo não está certo quando até mesmo o traficante se vicia”.

Outro ponto alto do documentário é quanto ao poder dos algoritmos no sentido de fazer com que cada vez maiores grupos de pessoas creiam em informações falsas ou conceitos carentes de comprovações científicas. Se as pessoas são influenciáveis no sentido de acreditar em teorias da conspiração, elas podem acreditar em qualquer coisa que lhes chegue às vistas por meio de redes sociais. Assim reputações são arrasadas, pessoas são presas ou mortas, ideologias são questionadas, presidentes são eleitos e destinos de milhares ou milhões são determinados pelo simples fato de que fake news podem render mais dinheiro do que notícias verdadeiras. Ademais as informações falsas têm um poder de viralização calculado em até 6 vezes maior do que notícias verdadeiras.

Quando estudávamos Ciência da Informação, na década passada, líamos necessariamente um teórico francês, que escrevera em 1996 que o excesso de informação pode causar mais confusão do que esclarecimentos. E que o dilúvio informacional poderia fazer naufragar os navegadores mais otimistas, e, por conseguinte, mais incautos. Na era da informação ou da desinformação, como queiram, o pior dos pesadelos é ter que conviver com a era da pós-verdade em meio a uma população subletrada, e, por vezes, incapaz de ler textos ou ver vídeos, decodificando letras e fundamentalmente a motivação de cada discurso por trás do que é dito.

Essa leitura de mundo que objetive a compreensão e intervenção nesse mundo que nós, educadores freireanos, tanto defendemos talvez seja a última trincheira que acolhe os utopistas que esperançam (sic) – do verbo esperançar, leia-se agir – por um mundo melhor contra os dragões da ignorância.

É preciso que abusos que têm sido operados na web seja fiscalizados e punidos; que se abram debates para limitar a atuação da influência indiscriminada no comportamento das pessoas. E que, a partir desses debates, levantem-se vozes e palavras de ordem em prol da construção de leis que preservem a integridade física e psicológica das pessoas ante à sanha pelo lucro em que incide o capitalismo. O repertório desta sereia é amplo. Que estejamos eternamente vigilantes e conscientes no sentido de fazer valer a nossa cidadania ativa, aquela que reconhece direitos e deveres, mas fundamentalmente se pauta na organização de coletivos que reivindiquem novos olhares diante de novas realidades para que nunca se perca de vista os direitos à liberdade, à vida e à busca da felicidade.

*Mário Gouveia Júnior é professor acadêmico, mestre em Ciência da Informação. Escreve às sextas-feiras.

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