SALA DE CINEMA – ‘Holy Motors’: a busca pela beleza do gesto
Pedro H. Azevedo*
Em 27.09.2020
Durante os anos 80 o cinema passou por um momento bem marcante. Se aproximando de um século de existência, o cinema já possuía uma história bem fundamentada, com ícones marcantes e convenções estabelecidas, e a linguagem cinematográfica já havia sido explorada das mais variadas formas. Diante desse cenário, diversos cineastas buscaram, intencionalmente ou não, novas formas de lidar com a linguagem.
Nesse contexto surgiu o Cinéma du look, movimento ou tendência do cinema francês durante a década de 80 caracterizado por filmes onde a forma e o estilo chamava mais atenção que a narrativa. Influenciados pela Nova Hollywood e Nouvelle Vague francesa, os diretores Jean-Jacques Beinex, Luc Besson e Leos Carax faziam filmes vibrantes e extravagantes que possuíam um dinamismo contemporâneo e inconsequente. O mais jovem dos três era Leos Carax, que fez seu primeiro longa, Boys Meets Girl, em 1984, quando tinha apenas 24 anos.
Inspirado fortemente pelos trabalhos subversivos do cineasta francês Jean-Luc Godard, os filmes de Carax sempre continham um espírito livre e apaixonado tanto na forma quanto nos conteúdos propostos. A estilização exacerbada no visual dos seus filmes apontava para a encenação enquanto elemento principal do cinema. Nos filmes de Carax, o impacto vem mais das imagens propriamente do que das histórias contadas. Sangue Ruim (1985), seu segundo filme, é lembrado majoritariamente pelo icônico tracking shot de Denis Lavant, em plena madrugada, correndo e dançando furiosamente como se tentasse fugir de si mesmo ao som de Modern Love de David Bowie, cena que o cineasta norte-americano Noah Baumbach refaz mais de 25 anos depois em Frances Ha (2012). Do mesmo jeito, o que mais fica de Os Amantes de Pont-Neuf (1991) é a épica cena da queima de fogos em celebração ao bicentenário da queda da Bastilha enquanto os personagens de Denis Lavant e Juliette Binoche se entregam um ao outro em uma dança instintiva. Essas são cenas que possuem um poder dramático independente do todo do filme ou da história que está sendo contada e que revelam o cinema como uma arte que vai além de simplesmente contar uma história. Para Carax, o cinema materializa emoções.
Mais de duas décadas depois, em 2012, é com o lançamento de Holy Motors que Leos Carax vai buscar mais uma vez essa força da encenação tão presente em seus filmes anteriores, mas agora de maneira extrema.
Logo no início do filme, assistimos uma plateia meio inerte, aparentemente dormindo no cinema assistindo a algo. Em seguida vemos o próprio Leos Carax de pijamas em um quarto de hotel abrindo uma porta secreta na parede, usando seu dedo como chave. O destino da porta é o cinema visto anteriormente por nós. Com essa metalinguagem estabelecida partimos para a história principal do filme. Ela mostra um dia na vida do senhor Oscar (Denis Lavant). Embarcamos junto com ele em uma limusine dirigida por Céline (Edith Scob), que além de sua motorista também é sua secretária. Na limusine, acompanhamos o seu trabalho, que consiste em Oscar viver/interpretar diversas vidas por Paris. Ele começa como um executivo do mercado financeiro para em seguida se tornar uma velha pedinte na rua, um assassino, um idoso à beira da morte, um pai indo buscar sua filha adolescente de uma festa e mais alguns outros. A história é realmente confusa e se aproxima do surrealismo, mas, logicamente, ela serve a um propósito.
A estrutura fragmentada que o filme estabelece junto com as personas bizarras que Oscar vai encarnando criam um sentimento de estranhamento com o que estamos vendo. Tentar entender, pelo menos inicialmente, o que está acontecendo em tela não faz muito sentido nem é realmente possível, resta então nos entregarmos a essa realidade fragmentada. E é aqui que a encenação (mise en scène) de Carax brilha.
Ao separar o seu protagonista em vários personagens que vivem experiências que logo percebemos que não terão um impacto direto na vida do senhor Oscar fica claro a falsidade do que estamos vendo em tela. Com isso Carax aparentemente busca sabotar a nossa suspensão de descrença, isto é, a nossa disposição de aceitar aquela realidade fabricada como algo real, o que pode acabar nos desconectando do filme. Porém, para nossa surpresa isso não acontece. Mesmo sabendo que aquelas cenas são desprovidas de qualquer efeito perpétuo, nós sentimos seu peso dramático e somos impactados por ela. Isso ocorre justamente porque a nossa relação com a arte não é primordialmente racional, mas sim emocional, sensorial. Então de nada adianta apontar a falsidade de algo, já que o que realmente nos toca não é a noção de realismo ou verdade de algo, mas a forma como esse algo é transmitido. É como uma ilusão de ótica, sabemos que aquilo é falso, mas somos incapazes de enxergar a falsidade por trás de tudo. Isso ocorre por causa do grande talento de Carax, que sabe muito bem como realizar cenas que possuem um impacto dramático em si mesmas, fazendo com que todos os fragmentos do filme sejam marcantes e nos afete. O maior exemplo aqui é a, já icônica, cena dos acordeons, cena que nem dentro da história está de fato, mas é tão incrível que empolga mesmo assim.
Com Holy Motors, Leos Carax busca mais do que tudo a essência do cinema, a capacidade que o cinema tem de concretizar os sentimentos, de materializar a alma do artista e de se impactar o espectador pela forma antes de tudo. Isso não quer dizer que o filme não possua um discurso, em vários momentos ele articula bem fortes e incisivas críticas ao cinema atual (o segundo “trabalho” do senhor Oscar é o que mais explicita isso). Mas é na cena que o personagem interpretado pelo saudoso Michel Piccoli pergunta o que leva o senhor Oscar — que na verdade não passa de um alter ego do próprio Leos Carax (esse nome inclusive é um anagrama para o nome verdadeiro do cineasta, Alex Oscar) — a continuar fazendo este trabalho que a revelação principal acontece. “A beleza do gesto”, o senhor Oscar responde, justificando todo o cinema de Carax.
*Pedro H. Azevedo é concluinte de Engenharia Mecânica. Escreve e administra a página Um Toque de Cinema no Instagram. Escreve aos domingos.
Foto destaque: highonfilms.com