A esperança de óculos, ou “a Primavera sempre vem”

Por

Mário Gouveia Júnior*

Em 30.10.2020

Alguém que tem privado o seu direito à liberdade só é capaz de quantificar sua sentença por meio do conjunto de experiências e sensações que serão tatuadas sobre a sua pele. Se tentássemos uma sinopse da novela “Na Colônia Penal”, de Kafka, talvez essa primeira frase pudesse dizer muito sobre a sua trama, cujo objeto central é a máquina e sua forma de punir condenados. É com um trecho dessa obra de Kafka que “A noite de 12 anos”, biografia dirigida pelo premiadíssimo Álvaro Brechner, faz abrir as cortinas para o cenário de terror em que esteve inserido o povo uruguaio quando da instauração da ditadura civil-militar, entre 1973 e 1985.

É tema central da obra cinematográfica de Brechner a forte repressão aos movimentos contrários à imposição dessa nova forma de governo, sobretudo os chamados Tupamaros, que se constituíram, entre começos dos anos 1960 e 1972, como um movimento de guerrilha urbana, que, a princípio, assaltavam bancos e cassinos e distribuíam comida e dinheiro para as pessoas mais pobres. Quando ações mais violentas, como sequestros de embaixadores e mortes de opositores foram praticadas pelos tupamaros, houve livre caminho para a repressão tão violenta quanto os atos causadores, bem como a imposição de um golpe de Estado nos meses que se seguiram.

Como protagonistas da trama estão Eleuterio Fernández Huidobro, jornalista e escritor uruguaio; José Alberto Mujica, político uruguaio; e Mauricio Rosencof, poeta e jornalista uruguaio. Todos três envolvidos com o movimento Tupamaro, e presos em função dessa relação.

Com a derrota dos tupamaros, em meio a muitas mortes e execuções, nove de seus poucos sobreviventes são retirados de prisões em que haviam sido confinados, em setembro de 1973, e convertidos em reféns pelo governo civil-militar recentemente implantado. Entre esses nove reféns estão Eleuterio, “el Ñato”, José Mujica, “El Pepe”, e Mauricio.

Se por um lado, aqueles que custodiavam tais reféns não lhes podiam tirar a vida, por outro, toda a sorte de tortura estava liberada, desde privação de água e alimento, passando por proibições de ir ao banheiro, bem como sistemáticos espancamentos e eletrochoques ao som de músicas clássicas, até a que, por muitos, é considerada a pior das torturas: o isolamento.

Os reféns, por ordens do Estado, deveriam ficar incomunicáveis entre si e sequer poderiam conversar com seus carcereiros. Não viam o sol, não viam outras pessoas. A justificativa oficial era que os reféns nada mais eram do que “rebeldes subversivos, traidores da pátria, dotados de alto poder de convencimento, e, por isso, o contato com eles deveria ser evitado”.

 

Efetivamente, o objetivo da proibição era eliminar qualquer resquício de sanidade entre os guerrilheiros. As condições de vida desumanas e a impossibilidade de manter contato com o mundo externo ou mesmo com companheiros implicou na morte de um dos nove reféns e na loucura provocada de dois deles.

John Done imortalizara uma reflexão acerca da impossibilidade de vivermos sozinhos: “Ninguém é uma ilha”. Nesse sentido, devemos considerar que o ato de comunicar-se é uma prerrogativa e uma necessidade humana; negar esse direito a alguém é desumanizá-la, é realocá-la numa categoria de um não-ser. Isso porque todos os seres viventes, mesmo plantas e animais, dependem do estabelecimento de comunicações para a sua sobrevivência. Os teóricos da complexidade e do pensamento sistêmico, do porte de Fritjof Capra, Bruno Latour e Maturana e Varela, que se debruçaram sobre as relações sistêmicas e como essas necessariamente envolvem os biomas corroboram com essa assertiva.

Proibidos de falar entre si, isolados em masmorras insalubres, os reféns desenvolvem uma forma de comunicação por meio de sons emitidos pela percussão de seus dedos e mãos contra as paredes das prisões, contíguas umas às outras. Ao reinventarem uma espécie de código morse, puderam, eles mesmos abrirem uma grande janela para a vida. Partilharam histórias e memórias de infância; organizaram revoluções; narraram novelas escritas na cabeça; e até disputaram partidas de xadrez, à medida que suas formas de comunicação e abstração partilhadas se complexificaram ao longo de todo o tempo em que estiveram presos.

Onde houver repressão, de uma forma ou de outra, os sujeitos encontrarão saídas para a transgressão. Exemplo marcante dessa ideia identificamos no fato de um dos guardas procurar o refém-escritor, ainda que desobedecendo ordens superiores de não falar com os presos, para lhe ditar cartas de amor para sua amada. Ao auxiliar o guarda em seus intentos românticos, Maurício reencontrava sua função e seu talento, ainda que sob violenta repressão.

Passagem marcante é a visita do Comitê Internacional da Cruz Vermelha para saber do estado de saúde e da qualidade de vida dos reféns. Nessa oportunidade, todo um cenário, com camas, cadeiras, rádios portáteis, papéis, lápis, máquinas de escrever e livros, é montado. Como todo espetáculo de farsa, quando as cortinas se fecham, tudo volta à sombria normalidade, e a dignidade apresentada aos visitantes é mais uma vez retirada dos reféns.

Foram 4.323 dias de luta e resistência.

O recado da mãe de Mujica, ainda que entregue tardiamente, lhe toca por todos os sentidos, reverbera dentro de sua cabeça, em meio a silêncios e vozes de comando: “É preciso resistir a qualquer maneira, é preciso sobreviver! Os únicos derrotados são os que desistem. Ninguém será capaz de tirar o que há dentro de você”. Foram 4.323 dias de luta e resistência. O chá-mate e o banho de sol, em contextos isolados, podem ter sido lampejos que alimentaram a alma para seguir resistindo, mas o desejo de liberdade foi a chama que os manteve vivos.

Numa palavra, não importa se o vaso é um penico, como o que Mujica recebeu na prisão. O que, de fato, é relevante é o que neste vaso cultivamos; e as flores que nascem da esperança de óculos de quem cultiva são representativas da ideia de que nenhum tipo de prisão, violência ou ordem será capaz de impedir a Primavera, que sempre vem, impunemente.

*Mário Gouveia Júnior é professor acadêmico, mestre em Ciência da Informação. Escreve às sextas-feiras.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.