A utopia de Paulo Freire é um ato de amorosidade
Nelino Azevedo de Mendonça*
Em 02.12.2020
A pedagogia de Paulo Freire reconhece na inconclusão do ser humano a grande virtude da humanidade. É pela nossa condição de sermos inconclusos que a história é sempre possibilidade, um permanente mover-se. Daí que a educação libertadora considera sempre o caráter histórico da condição existencial dos seres humanos. Daí que “o sonho pela humanização, cuja concretização é sempre processo, e sempre devir, passa pela ruptura das amarras reais, concretas, de ordem econômica, política, social, ideológica etc., que nos estão condenando à desumanização”, como nos ensina Paulo Freire, em seu livro Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido, Paz e Terra, (1992, p. 99).
A questão da inconclusão do ser humano aparece como um aspecto fundante para dar o sentido de utopia na pedagogia de Paulo Freire. Ele diz em À Sombra desta Mangueira, editora Olho d’Água, que “a educação precisa tanto da formação técnica, científica e profissional, quanto do sonho e da utopia” (2005, p. 29). Desse modo, não há utopia sem sonho, sem esperança, sem fé. “A matriz da esperança é a mesma da educabilidade do ser humano: o inacabamento de seu ser de que se tornou consciente” (FREIRE, 2000, p. 114) em Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos, UNESP. No entanto, a utopia implica em outros aspectos para, de fato, tornar-se práxis revolucionária na perspectiva da transformação do mundo.
É possível identificar no personalismo cristão, principalmente de Emmanuel Mounier, influências conceituais para a formulação do sentido de utopia em Freire. Mounier apresenta uma visão valorativa de esperança, de afetividade, de amor, de liberdade, como perspectiva utópica e condição para uma sociedade mais humana e solidária, tendo como base o reconhecimento da pessoa na própria história. Esses mesmos aspectos são assumidos por Freire em sua pedagogia. Mounier afirma que “se as pessoas não são mais do que brotantes liberdades, rigorosamente solitárias, não pode haver entre elas uma história; são outras tantas histórias incomunicáveis. Há uma história porque há uma humanidade.” E completa: “Mas se o destino desta história está de antemão fixo não pode haver liberdade” (2004, p. 97), no livro O personalismo, Editora Centauro.
Do marxismo, Paulo Freire também incorpora algumas contribuições significativas para o sentido de utopia. A afirmação de utopia como práxis revolucionária, enquanto denúncia das estruturas desumanizantes e anúncio das estruturas que possibilitam processos de humanização, a ser assumida pelas classes dominadas, como também, o sentido de unidade dialética para significar o movimento de ação-reflexão que conduz à utopia através do compromisso histórico, por exemplo, mostram bem essas contribuições.
No livro Conscientização, 1980, Editora Moraes, Freire define utopia como um ato de conhecimento, sendo, portanto, resultado de uma consciência crítica que, ao desvelar o mundo, compreende que é através da intervenção humana que a realidade se transforma. Dessa maneira, a utopia é algo realizável, nada tem a ver com idealismo ingênuo. Implica em práxis. É um processo de denúncia-anúncio e está relacionada ao tempo histórico, que, sendo possibilidade, demanda um compromisso histórico com o tempo necessário de transformação.
Freire apresenta uma abordagem sobre utopia em Ação Cultural para a Liberdade e outros escritos, 1982, Editora Paz e Terra, na mesma linha conceitual formulada no livro Conscientização, considerando a utopia dentro da mesma perspectiva da dialetização entre denúncia-anúncio, como um ato de conhecimento crítico. No entanto, incorpora novos aspectos ao seu entendimento político-educativo sobre a utopia. Nesse livro, ele afirma que o caráter utópico da pedagogia libertadora é tão permanente quanto o próprio processo educativo, quer dizer, é muito mais que o ato de conhecimento que se instaura entre os atos de denúncia e de anúncio, tendo em vista que esse caráter utópico deve mover-se na própria dinâmica histórica da realidade que, ao se fazer/refazer, está sempre sendo.
Dessa maneira, a condição de dominação que gera a dependência e a opressão, expressão de uma sociedade de classes, deve ser superada na medida em que as classes oprimidas assumam, concretamente, o ato de denúncia e anúncio como forma de intervenção. É, então, nesse contexto de dominação e dependência como resultado de uma sociedade de classes, que Freire localiza a sua pedagogia humanizadora, utopicamente comprometida com a transformação do mundo e com a libertação dos seres humanos.
A partir da década de 90, Freire torna a utopia um assunto recorrente em seus livros, aborda-o, mais intensamente, como esperança, fé, sonho, história como possibilidade, sempre o considerando no contexto da prática político-educativa como forma de enfrentamento à ideologia fatalista do pragmatismo neoliberal. “Daí [enfatiza em Pedagogia da Autonomia, editora Paz e Terra], a crítica permanentemente presente em mim à malvadez neoliberal, ao cinismo de sua ideologia fatalista e a sua recusa inflexível ao sonho e à utopia” (1996, p.14).
Freire é radical em sua crítica à postura mecanicista independentemente de sua origem ideológica, ao afirmar que “A desproblematização do futuro numa compreensão mecanicista da história, de direita ou de esquerda, leva necessariamente à morte ou à negação autoritária do sonho, da utopia, da esperança” 1996, p. 73). Crítica semelhante apresenta em Pedagogia da Indignação ao “profetizar” que “o presente ‘vitorioso’ do neoliberalismo é o futuro a que nos adaptaremos. Ao mesmo tempo em que este discurso fala da morte do sonho e da utopia e desproblematiza o futuro, se afirma como um discurso fatalista” (2000, p. 123).
É nessa perspectiva, afirmada por Paulo Freire, que o sentido de utopia vai se concretizando na direção dos horizontes almejados para a realização da dignidade humana. A utopia que tem a esperança como alimento que nos impulsiona para a necessária luta em defesa dos direitos humanos, da inclusão de todos e de todas, da dignidade das pessoas em poderem realizar a sua existência de maneira mais justa, em permanente processo de humanização. Humanização que só é possível pela afirmação da alteridade, porque verdadeiramente só é possível quando se constitui pela afirmação de si e do outro. E isso significa compreender a vivenciar a utopia como um ato de amorosidade.
*Nelino Azevedo de Mendonça é professor, mestre em Educação e membro da Academia Cabense de Letras. Escreve às quartas-feiras.
Nelino,
Leitura agradável, profunda e animadora. Vamos sonhar as utopias e as amorosidades.
Parabéns pelo artigo.
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Querido Fernando,
Obrigado pelo seu comentário. Vamos à luta. Abraços
Nelino,
Seu texto traz um sentimento de esperança por entendermos que a utopia é movimento e
busca a amorosidade.
Assim, nutrimos nossas humanidades.
Parabéns!
Querida Vera Braga,
A esperança como inquietação e luta é o que materializa a utopia.
Obrigado pelo comentário.
Parabéns Nelino, boa reflexão colocando a utopia como possibilidade de real sentimento amoroso.
Querida Vera Rocha,
Obrigado pelo seu comentário. Vamos firmes nesse ato de amorosidade.
Parabéns, Nelino! Você faz reflexão sobre as obras de Paulo Freire com uma leveza que o passei fica admirável.
Querida Erivalda, nossa presidenta do Centro de Estudos e Pesquisas Paulo Freire,
fico feliz com o seu comentário.
Abraços
Só com o amor e o sonho, poderemos vencer as desigualdades e seguirmos para um futuro frutífero!!
Parabéns Nelino pela reflexão! grande abraço!!!
Júnior Kaboclo (mensagem anterior)