A dignidade do Almirante Negro confronta a história das Armadas do Brasil
Rita Cristina de Oliveira*
Em 14.02.2021
Salve o Navegante Negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais.
(Aldir Blanc e João Bosco)
A história do papel das forças armadas no Brasil é a de uma relação mal resolvida de autoritarismo, estado de exceção, golpes e violações de direitos humanos contra a sua própria população.
Relembrar a figura de João Cândido Felisberto, líder da rebelião desencadeada em 22.11.1910, que envolveu cerca de 2.300 marinheiros, contra a imposição de chibatadas e castigos físicos na Marinha, ganha relevância para compreender um significado de dignidade ainda não concebido nas forças armadas do Brasil.
Gilberto Amado disse que João Cândido foi capaz de violentar a história com coragem e magnanimidade excepcionais. A atualidade dessa reflexão nos leva a questionar o significado de patriotismo que orienta nossas forças armadas num tempo em que novamente vemos oficiais militares associados ao governo da nação esbanjando alianças espúrias, compactuando com toda sorte de impropérios e palavrões proferidos em aparições públicas.
A Revolta da Chibata segue renegada pela Marinha do Brasil, que classificou-a como “rebelião ilegal, sem qualquer amparo moral ou legítimo”, fruto da “ruptura do preceito hierárquico” (Folha de São Paulo, 09/03/2008).
Somente em 13.5.2008, foi aprovada a Lei 11.756/2008, sancionada pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, para conceder anistia post mortem a João Cândido e demais envolvidos na Revolta da Chibata. João Cândido, ainda em vida, recebeu diversas homenagens, inscreveu seu nome na história do Brasil e foi alçado pelo povo ao posto de Almirante Negro.
Quando deflagrada a revolta, as chibatadas estavam impregnadas na disciplina militar naval. Fazia-se letra morta do decreto n. 3 de 16.11.1889, que proibia a aplicação dos castigos físicos nas Armadas.
Os marujos, majoritariamente negros, seguiam cruelmente açoitados e representavam a massa escravizada da força naval. Alegava-se que a tradição sádica era necessária para manter a ordem e a disciplina entre a marujada, sujeita a trabalhos extenuantes, soldos muito baixos, ao passo que o oficialato, repleto de filhos da elite, dependia dos marujos para manter condições de privilégio militar no cumprimento das funções.
O dia que precipitou a revolta foi marcado pelo espancamento com 250 chibatadas do marujo Marcelino Rodrigues de Menezes.
João Cândido era um marinheiro de destaque, com certo trânsito, mesmo entre os oficiais. Tanto que foi destacado para compor a equipe que trouxe da Inglaterra o encouraçado Minas Gerais, cuja aquisição foi considerada um grande feito naval.
Apesar de nunca ter sofrido castigos físicos, Cândido colocaria suas habilidades excepcionais à disposição dos marujos oprimidos para liderar uma insurreição competente em colocar a então capital federal, Rio de Janeiro, sob a mira dos mais poderosos canhões da esquadra e assim forçar o governo federal a negociar com a marujada o fim das chibatas e dos tratamentos degradantes.
Com os canhões vertidos para a capital, compeliram o Governo do Marechal Hermes da Fonseca a uma intensa negociação, com acalorados debates no parlamento, e angariaram crescente simpatia popular.
Sem saída, política e militar, o governo repleto de militares se viu obrigado, sob intensos protestos dos comandos das forças armadas, à concessão formal de anistia aos revoltosos e a proibir definitivamente os castigos físicos na Marinha. Naqueles dias, como relatou Edmar Morel, João Cândido “foi o árbitro de uma nação, exigindo leis de humanidade ao Congresso Nacional.”
Enquanto perdurou a revolta, oficiais da Marinha manifestavam desagrado com a postura do Governo em não autorizar o combate aos amotinados.
Rui Barbosa, que, segundo relatos da Marinha na época, teria sido subscritor de um desaparecido decreto que autorizava o castigo das chibatas, o de número 328, de 12 de abril de 1890, bem descreveu que a estratégia da revolta colocara o Governo em uma encruzilhada, pois, ou se estaria provado que a artilharia naval recém adquirida seria fruto de um grande engodo comercial da nação, já que poderia ser destruída militarmente por forças de terra, ou forçoso admitir a impotência diante do poderio dos rebelados que até então esbanjavam posturas de uma luta honesta, enfatizando que “gente dessa ordem não se despreza, lamentam-se os desvios, mas reconhece-se o valor humano que ela representa.”
A vitória da Revolta da Chibata aproveitaria aos marinheiros que a partir de então passaram a incorporar a força naval. Mas em poucos dias, o governo trairia seu compromisso de anistia, empreendendo conspirações e perseguições a João Cândido e aos revoltosos.
Nos primeiros dias, Cândido foi deixado em uma solitária com 17 companheiros, sob sol escaldante, sem água e comida, obrigado a respirar por dois dias uma nuvem de cal lançada na cela a pretexto de desinfecção.
Em 04.12.1910, a Marinha forjou uma nova rebelião, sem vitimar um único oficial, para falsear o envolvimento dos anistiados, levando à decretação de estado de sítio. Perpetrou-se o fuzilamento de vários marinheiros obrigados a ingressar no navio Satélite que os conduzia ao trabalho escravo na produção da borracha na selva Amazônica e a prisão de João Cândido em uma masmorra da Fortaleza de São José, na Ilha das Cobras. Nos primeiros dias, Cândido foi deixado em uma solitária com 17 companheiros, sob sol escaldante, sem água e comida, obrigado a respirar por dois dias uma nuvem de cal lançada na cela a pretexto de desinfecção. Apenas João Cândido e outro soldado naval sobreviveram àqueles dias.
O episódio deixou traumas em João Cândido que foram usados como justificativa pela Marinha para determinar sua internação compulsória no Hospital Nacional dos Alienados, em 18.4.1911. O diagnóstico de alienação mental foi recusado pelos médicos e poucos meses depois ele voltou para a prisão na Ilha das Cobras. Somente um ano e meio após sua prisão seria então julgado na Justiça Militar, defendido graciosa e apaixonadamente pelos advogados Evaristo de Moraes, Jerônimo de Carvalho e Caio Monteiro de Barros.
Apesar de debilitado pela tuberculose, João Cândido, que tinha convicção plena de sua inocência e justiça de sua luta, se apresentou com altivez em seu julgamento diante do Conselho de Guerra. O julgamento, que duraria 48 horas, não derrotou a figura de João Cândido, um herói popular.
O suplício na vida militar de João Cândido terminou ali com sua absolvição e desligamento da Marinha. Mas enquanto saía da vida militar repleta de perseguições e sem qualquer reparação, o Comandante Marques da Rocha, seu carrasco na prisão da Ilha das Cobras, foi promovido a Contra-Almirante pelos serviços prestados contra os revoltosos.
Cândido tentou trabalhar em pequenas embarcações privadas, mas a perseguição da Marinha seguia implacável, fazendo com que fosse logo demitido. Com a economia de alguns biscates comprou um pequeno barco e passou a vender peixes na Praça XV até que, já no fim de sua vida, passou a receber, por lei de iniciativa de deputados estaduais, uma pequena pensão do estado da Guanabara, em meio à efusiva repercussão de sua biografia escrita pelo jornalista Edmar Morel, lançada em 1959, cujo título cunharia o nome “A Revolta da Chibata” .
Entre o levante, o triunfo e as perseguições, João Cândido se portou com a mesma dignidade de um verdadeiro patriota. Nem mesmo durante os dias que teve sob sua liderança a poderosa esquadra naval brasileira vestiu um uniforme de almirante. Esteve todo tempo com sua farda de marujo, rasgada nos joelhos, tendo como distintivo apenas seu lenço vermelho, que simbolizava a revolta.
Morreu em 06.12.1969 e no seu enterro, como conta Morel, o reverendo em oração “pediu paz a um homem que em setenta anos de luta, desde a revolta de 1910, jamais conheceu a tranquilidade e a fartura”.
O recalque das forças armadas com a dignidade de João Cândido atravessaria o século XX.
“Entre sem bater“
Ainda em 1934, o humorista político Apparício Torelly, conhecido como Barão de Itararé, após lançar a série de artigos “A Insurreição dos Marinheiros de 1910” no jornal Folha do Povo, à altura do 10º capítulo, foi sequestrado e espancado por homens encapuzados, fato que o levou a pendurar na porta de sua sala na redação a placa com os dizeres “Entre sem bater“.
Após o golpe de 1964, foi a vez de Edmar Morel ter seus direitos políticos cassados.
E em 1974, a censura recaiu sobre a canção de Aldir Blanc e João Bosco, obrigando os compositores a alterarem o título duas vezes, quando vetados sucessivamente os títulos “Almirante Negro” e “Navegante Negro”. O título “O Mestre-Sala dos Mares” foi a solução encontrada para despistar a censura.
De fato, a beleza e destreza de um mestre-sala talvez melhor represente a dignidade altiva de João Cândido, pois ao contrário de muitos militares que vemos em nossa combalida trajetória republicana e democrática, o Almirante Negro realmente amava o Brasil acima de todos a ponto de ter sua vida transformada em um holocausto em prol de uma causa justa para as gerações seguintes, suas lutas inglórias através da nossa história não esqueceremos jamais e seu legado é que está à altura de um verdadeiro mito heroico.
*Rita Cristina de Oliveira é defensora pública federal, especialista em Direito Público e coordenadora do Grupo de Trabalho de Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União.
Artigo publicado originalmente no portal Justificando.
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