Acabou o nosso carnaval…
Mirtes Cordeiro*
Em 15.02.2021
“Acabou nosso carnaval, ninguém ouve cantar canções, ninguém passa mais brincando feliz… e, no entanto, é preciso cantar, mais que nunca é preciso cantar, é preciso cantar e alegrar a cidade… a tristeza que a gente tem, qualquer dia vai se acabar” …
Quem da minha geração não cantou os versos desta linda “Marcha de Quarta Feira de Cinzas” de Vinicius de Moraes e Carlos Lyra, gravada em 1963?
Pois não é que aconteceu? Após mais de um século, este ano não temos carnaval. Não pela fadiga ou enfraquecimento da festa, mas pelas consequências nefastas das atitudes dos seres humanos que habitam a terra, contribuindo assim para os desastres ambientais que chegam em nome de pandemia.
Há uma complexidade considerável nessa história de não ter carnaval, mesmo que seja para que a pandemia não continue a disseminar o vírus e se possa controlar a doença.
Compreensível e necessária, é justa e é correta a decisão das autoridades voltada a preservar a questão sanitária que é de interesse de todos. É o que se esperava, já que o carnaval é um movimento que se constrói através de aglomerações das pessoas nos blocos e nas troças carnavalescas, nas escolas de samba, no vai e vem aglomerativo da população nos bairros, nos centros da cidade, nas pontas de ruas das periferias urbanas, acompanhando batuques, bandas de pau e cordas, comandados por uma alegria inebriante carregada de sonhos, amores e sofrimentos.
O nosso carnaval, com muita propriedade, fala da alma do povo brasileiro. Há quem diga que é “o aquecimento da alma”; outros falam que “ameniza as dores do coração”, e há os que se sentem vivendo o “seu próprio eu” durante a folia. Chico Buarque, em sua canção Vai Passar, fala da “uma ofegante epidemia que se chamava carnaval”.
É talvez a festa a mais popular do planeta. Aqui em Pernambuco o sentimento carnavalesco não deixou de se manifestar virtualmente ou através da saudade manifestada individualmente e começou obedecendo o sentimento das prévias carnavalescas, no coração de cada pernambucano.
A ausência do carnaval trouxe aos pernambucanos um sentimento de orfandade. Durante todo mês de fevereiro vimos assistindo a demonstração dessa ausência de várias formas, como nos enfeites das frentes das casas, sombrinhas coloridas lembrando o frevo, um festival de vídeos sobre as festas carnavalescas pipocando nas redes sociais. Até pessoas fantasiadas em suas caminhadas matinais e individuais.
Aliás, os primeiros sinais dos festejos carnavalescos no Brasil sugiram ainda no século XVII, em Pernambuco, “quando trabalhadores das Companhias de Carregadores de Açúcar e das Companhias de Carregadores de Mercadorias se reuniam para a Festa de Reis, formando cortejos carregando caixões de madeira e improvisando cantigas em ritmo de marcha”.
Segundo alguns historiadores, o Carnaval foi trazido ao Brasil pelos colonizadores portugueses entre os séculos XVI e XVII, manifestando-se inicialmente por meio do entrudo, uma brincadeira popular, que consistia em jogar água, areia e maizena nas pessoas. Com o passar do tempo, o carnaval foi adquirindo outras formas de se manifestar, como o baile de máscaras, geralmente realizado nos salões nobres. Com o surgimento das sociedades carnavalescas aconteceu a popularização da festa entre as camadas pobres da população.
A partir do século XX, com a popularização da festa, surgiu o samba, em 1910, estilo musical muito influenciado pela cultura africana, resultando no desfile das escolas de samba, evento que acabou sendo oficializado com apoio governamental, sobretudo no Rio de Janeiro, com repercussão para o mundo inteiro.
As marchinhas de carnaval surgiram também no século XIX, destacando-se a figura de Chiquinha Gonzaga, bem como sua música “Ô abre alas”. O samba estreou com a música “Pelo Telefone”, de Donga e Mauro de Almeida, tornando-se, ao longo do tempo, o grande sujeito musical do Carnaval.
Na Bahia, os primeiros afoxés surgiram na virada do século XIX para o XX com o objetivo de relembrar as tradições culturais africanas. “Os primeiros afoxés foram o “Embaixada da África” e os “Pândegos da África”. Por volta do mesmo período, o frevo passou a ser praticado no Recife e o maracatu ganhou as ruas em Olinda”. (Brasil Escola)
Consta em escritos que a música Vassourinhas virou uma espécie de hino popular de Pernambuco.
Em 1930 foram gravados os primeiros frevos: “Pernambucano”, de Luperce Miranda e Osvaldo Santiago, e “Vamo se Acabá”, de Nelson Ferreira. No entanto, já em 1909 foi escrita a música para o Clube Vassourinhas, que havia sido fundado em 1889, um ano após a assinatura da Lei Áurea, que libertou os escravos. Consta em escritos que a música Vassourinhas virou uma espécie de hino popular de Pernambuco. Recentemente, Silvério pessoa atacou com “O Micróbio do Frevo”, uma conclamação ao país a aderir ao ritmo.
A festa, considerada profana, guarda uma relação com as datas das atividades religiosas praticadas na antiguidade, antecedendo, portanto, o calendário religioso. Era um período anual que atualmente corresponde ao período de três dias, que sempre acaba na Quarta-feira de Cinzas, às vésperas da Quaresma, que é a designação do período de quarenta dias que antecedem a principal celebração do cristianismo, a Páscoa, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Sendo que a palavra carnaval vem do latim carnem levare, que significa “abster-se, afastar-se da carne”.
Nada talvez traduza mais a alma do povo brasileiro do que o carnaval. A alegria tradicional, a diversidade cultural, o sincretismo religioso invadindo a festa pagã, a criatividade sem limites que se manifesta nas fantasias, nos festejos, na música, a convivência plural de raças, idades e classes sociais explodindo nas ruas, praças e avenidas, tornando o período carnavalesco um momento de transbordamento dos mais variados sentimentos.
Mas, eis que chegou o novo coronavírus, juntou-se à má eficiência das políticas públicas, ao negacionismo do governo central e, encontrando uma sociedade muito desigual, com a maioria da população com pouca qualidade de vida, instalou-se e está fazendo moradia, já tendo levado à morte mais de 237 mil pessoas em todos os recantos do país.
E relembrando a canção… “Pelas ruas o que se vê, é uma gente que nem se vê, que nem se sorri, se beija e se abraça, e sai caminhando, dançando e cantando cantigas de amor”.
Além de desestabilizar os sentimentos, a ausência do carnaval se faz ressentir na economia, porque a festa movimenta vários tipos de negócios no país inteiro. Acabando a festa é reduzida a renda, os empregos e a arrecadação de impostos. Mas quem sofre mais é a população pobre, que tem no carnaval alternativa de sobrevivência.
A grande ansiedade neste momento está localizada na esperança de se tomar a vacina que vem chegando devagar, atropelada pela má vontade do governo federal e, obviamente pela escassez, já que não partiu na frente para fazer as negociações com os fabricantes.
Quem tem caminhado pelas ruas de Olinda e Recife tem conferido que a população segue firme na sua desdita, contra a pandemia e abnegado com a ausência da folia.
Nenhum pé de gente nos Quatro Cantos de Olinda; a ponte Duarte Coelho permanece inerte ante a ausência do Galo que lá se aninhava na quinta-feira e só de lá saía na quarta-feira de cinzas. Sem as festas de Zé Pereira; sem a animação do sábado gordo no Mercado da Boa Vista; sem o dragão do Eu Acho é Pouco subindo e descendo ladeiras “ao som dos clarins gigantes, Olinda quero cantar” e sem os papangus de Bezerros no domingo carnavalesco, Pernambuco seguiu o caminho do desalento, mas ao mesmo tempo, da sabedoria. É preciso tornar viável o retorno à convivência com uma vida tranquila, expulsando o vírus.
A esperança vencerá e no ano que vem, com a população imunizada,voltaremos todos às ruas, como continua o canto da marcha da quarta-feira… “porque são tantas coisas azuis e há tão grandes promessas de luz tanto amor para amar de que a gente nem sabe… quem me dera viver pra ver e brincar outros carnavais e o povo cantando seu canto de paz”.
*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.
Foto: Felipe Jordão/JC Imagem – Ponte Duarte Coelho no sábado 13.02.2021
Muito bom o conteúdo, principalmente pela musicas carnavalescas, pela a história do carnaval e o tempo atual da pandemia… que todos os dias desafia a humanidade!! Triste por não ter carnaval, mas esperançosa de dias melhores com carnaval nosso de todos anos!!
Mirtes, sempre bom ler esse texto que vc escreve que traz reflexao e emoção. Viva o carnaval!!
Bom dia! Texto ímpar. Traduz além da silenciosa ou da expressa saudade melancólIca dos foliões e de seus expectadores as informações da trajetória histórica e conceitual do carnaval. Que memória serria preservada se não fosse registrada? Parabéns!!!
Mirtes, adorei este “passeio” pela história do carnaval!! Texto brilhante e emocionante ao mesmo tempo. Dias melhores virão!!!