Um tapa na cara do estado democrático de direito
Luiz Antônio Alves Capra*
Em 27.03.21
Anualmente nosso país tem um encontro marcado com o seu passado autoritário.
A cada 31 de março, como se voltassem ao ano de 1964, os quartéis, em sua ordem do dia, homenageiam o golpe de Estado que desfecharam contra a democracia.
Pródigos em jogar com as palavras para justificar o injustificável, ainda se permitem denominar março de 1964 como uma “revolução democrática”.
Um verdadeiro escárnio.
Na realidade, eles sabem, embora não admitam, que foi um golpe de Estado.
Chamar de “revolução democrática” é apenas uma forma de “dourar a pílula”, um engodo, um meio chique e limpinho para não sujar as mãos com os atos praticados entre 1964 e 1985 nos porões da ditadura.
Aliás, que outro nome se poderia dar a um movimento da alta cúpula militar que, violando a Constituição, depõe, pela força das armas, um presidente legitimamente eleito?
Ora, devemos dar às coisas o seu efetivo nome. Assim, golpe somente pode ser chamado de golpe. Aliás, com nome e sobrenome, foi golpe de Estado militar.
A semântica importa, não é “firula”, porque é necessário superar essa “amnésia sistemática em relação a crimes de um Estado ilegal” (SAFLATE, 2010, p. 237-252).
Afinal, até quando o Estado, embora sabedor de que o passado é imodificável, tentará subverter o seu sentido a fim de ocultar as atrocidades cometidas nesse período?
Os crimes de Estado correspondem a diversas condutas, tais como o terrorismo, a tortura, os crimes de guerra, os crimes corporativos de Estado, os desastres “naturais”, os despejos forçados em massa e o respectivo desalojamento de população, a limpeza étnica e o genocídio (GREEN, 2017, p. 451-468).
Crimes dessa natureza possuem dois traços marcantes: O primeiro é o de que correspondem a violações de direitos humanos. O segundo, é que, via de regra, são cometidos pelo próprio Estado.
Nos casos em que o Estado é o criminoso há aquilo que Garapon denomina como uma “política delinquente”, ou seja, “uma ação coletiva organizada almejando objetivos precisos” (GARAPON, p. 121).
Foi justamente em razão dessa espécie de crimes que a comunidade internacional se organizou em torno do Estatuto de Roma, ao qual aderiu o Brasil por meio do Decreto n. 4.388/02 (BRASIL, 2002).
Por essa legislação, são crimes contra a humanidade aquelas condutas que são cometidas no contexto de um ataque a uma população civil, generalizado ou sistemático (BRASIL, 2002, art. 7º).
Nesse contexto se inserem, dentre outros, o homicídio, o extermínio, a privação da liberdade com desrespeito às normas internacionais, a tortura, a agressão sexual, a perseguição de um grupo ou coletividade por motivos políticos e o desaparecimento forçado de pessoas (BRASIL, 2002, art. 7º).
Abrange, também, “outros atos desumanos”, o que permite concluir que a extrema gravidade desses crimes reside justamente na desumanização da vítima (BRASIL, 2002, art. 7º).
Assim, “[…] o crime contra a humanidade representa tanto um crime real – o assassínio do outro – como a sua supressão simbólica, isto é, a perda total da consideração por outrem” (GARAPON, 2004. p. 109-112).
Por essa perspectiva, as prisões ilegais, as torturas, a violência sexual, as execuções sumárias, os desaparecimentos forçados e as ocultações de cadáveres praticados pela ditadura militar (1964/1985) configuram crimes contra a humanidade.
A essa mesma constatação chegou a Comissão Nacional da Verdade, ou seja, a de que “Na ditadura militar, a repressão e a eliminação de opositores políticos se converteram em política de Estado”, configurando crimes contra a humanidade (BRASIL, Comissão Nacional da Verdade, 2014).
Se vamos retornar a esse período, deixemos que as vítimas falem:
“[…] apesar de estar grávida na ocasião e disto ter ciência os seus torturadores […] ficou vários dias sem qualquer alimentação” (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985, p.39).
“[…] foi submetida a torturas com choque, drogas, sevícias sexuais, exposição de cobras e baratas; que essas torturas eram efetuadas pelos próprios oficiais” (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985, p.39).
“[…] a interroganda quer ainda declarar que durante a primeira fase do interrogatório foram colocadas baratas sobre o seu corpo, e introduzida uma no seu ânus […]” (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985, p.39).
“[…] o interrogando sofreu espancamento com um cassetete de alumínio nas nádegas, até deixa-lo, naquele local, em carne viva (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985, p.40).
“[…] sofreu sevícias, tendo, inclusive, um aborto provocado que lhe causou grande hemorragia […]” (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985, p.39).
“[…] esteve cem dias em cárcere privado, onde foi submetida a coações e sevícias de ordem física, psicológica e moral […]” (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985,241).
Seria possível encher tantas outras páginas com relatos semelhantes, mas a reprodução das atrocidades cometidas transbordaria, em muito, dos limites estabelecidos para este texto.
Há, também, aqueles cuja voz foi silenciada, tais como, dentre outros, o jornalista Wladimir Herzog, o operário Manoel Fiel Filho e o estudante Alexandre Vannucchi Leme. Outros tantos, a exemplo do Deputado Rubens Paiva, desaparecerem nas mãos dos seus algozes para não mais voltar.
Essa pequena amostra das atrocidades cometidas é mais do que suficiente para, a partir da Constituição de 1988, afirmar que comemorar março de 64 é um tapa na cara do Estado Democrático de Direito. Não apenas isso, é um evidente desrespeito à Constituição.
É que não há Estado Democrático de Direito e, tampouco, respeito à Constituição sem que se respeite a dignidade da pessoa humana.
Aliás, a submissão do Estado e de suas instituições à Constituição é algo tão óbvio que sequer necessitaria ser afirmado.
Pois bem, sendo as Forças Armadas instituições do Estado (art. 142 da CF), parece lógico compreender que as suas manifestações, nelas inseridas aquelas lidas a cada 31 de março, correspondem a manifestações do Estado brasileiro.
A partir daí, construo o meu raciocínio com base na Constituição Federal.
A nossa opção, enquanto sociedade, foi a de construir um Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput, da CF). Por outro lado, a pretensão de alcançar um Estado Democrático de Direito pressupõe o incondicional respeito à Constituição.
Partindo dessas premissas, não parece difícil concluir que o Estado brasileiro e suas instituições devem estrita obediência ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), bem como aos demais comandos constitucionais.
Quero focar, contudo, na dignidade da pessoa humana que, como explica Sarlet, foi guindada, pelo constituinte, “[…] à condição de princípio (e valor) fundamental” (SARLET, 2004, p.67).
Pela perspectiva que nos interessa, “[…] temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano […]” (SARLET, 2004, p. 59-60).
É por esse prisma, portanto, ou seja, da dignidade da pessoa humana, que vamos olhar para esse escárnio que é cometido a cada dia 31 de março.
Escárnio, sim, porque, conforme aponta o Ministro Ricardo Lewandowski, “No caso brasileiro, os conhecidos abusos e crimes cometidos contra cidadãos e estrangeiros durante o regime de exceção, que durou aproximadamente de 1964 a 1985, ensejaram a inclusão da dignidade da pessoa humana no corpo da denominada “Constituição-Cidadã” como um dos pilares do Estado Democrático de Direito que ela institui e consagra” (BRASIL, STF, 2015).
Não é necessário muito esforço, portanto, para concluir que ao Estado brasileiro não é dada a prática de qualquer ato que atribua honras ao período de exceção, ou seja, à ditadura militar de 1964/1985, sem que isso importe em frontal violação ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Em primeiro lugar, porque homenagear um regime criminoso já importa, por si só, em louvar todas as atrocidades ocorridas nesse período, em proceder que atinge diretamente a dignidade da pessoa humana.
Em segundo lugar, porque toda e qualquer rememoração festiva desse período de exceção importa em cruel violação à memória e à dignidade das vítimas, assim como dos seus familiares.
Comemorar março de 64 é, portanto, um tapa na cara do Estado Democrático de Direito, pois a nenhum Estado civilizado e democrático é dado comemorar a barbárie.
*Luiz Antônio Alves Capra é Juiz de Direito no RS, membro da AJD e Professor de Direito Penal.
Referências
ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO – Brasil: Nunca Mais. Petrópolis, Vozes, 1985.
BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da Verdade. – Recurso eletrônico. – Brasília: CNV, 2014. 976 p. – (Relatório da Comissão Nacional da Verdade; v. 3), p. 963. Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/. Acesso em: 21 jun. 2019.
BRASIL. Presidência da República. Decreto n. 4.388, de 25 de setembro de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm. Acesso em: 22 jun. 2019.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 592.581. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski, j. em 13/08/2015. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10166964. Acesso em: 18 mar. 2021.
GARAPON, Antoine. Crimes que não se podem punir nem perdoar: para uma justiça internacional. Tradução: Pedro Henriques. Lisboa: Instituto Piaget,2004.
GREEN, Penny. O desafio do crime de Estado. Tradução: Luiza Borges Terra e Allan Callahan Garcia. Criminologias alternativas. Org. Pat Carlen e Leandro Aires França. Porto Alegre: Canal Ciências Criminais, 2017. p. 451-468.
SAFLATE, Vladimir. Do uso da violência contra o Estado ilegal. In: TELES, Edson; SAFLATE, Vladimir (Org.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 237-52.
Artigo publicado originalmente no portal Justificando.
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