O Brasil e suas desventuras
Mirtes Cordeiro*
Em 17.05.2021
Algumas instituições têm funcionado como se os dirigentes fossem os “capitães do mato” da era moderna.
O Brasil não consegue extrair de sua história o aprendizado necessário para reparar erros, injustiças e iniquidades que concorrem para que a sociedade brasileira, como um todo, padeça por desequilíbrios e determinadas mazelas que impedem o seu crescimento enquanto nação que se quer democrática e defensora de direitos e oportunidades para todos nós, brasileiros.
Quando eu era criança e a minha família frequentava a Igreja Católica, participávamos efetivamente dos ritos, das cerimônias, das procissões, das missas, dos leilões organizados para fazer finança para manter a Igreja. Meu pai, descendente da escrava chamada Mãe de Casa, que pariu os filhos com um português branco, era mais fervoroso na sua fé. Minha mãe, uma cabocla descendente de uma índia da tribo Jucás, dos sertões dos Inhamuns, com um branco que vandalizou o sertão em busca de escravizar os índios, era mais desconfiada com relação às crenças religiosas.
Eu e minha irmã fomos batizadas, crismadas e fizemos a primeira comunhão, além de pertencermos à corte dos “anjos”, crianças que se vestiam com roupas brancas e asas imponentes e acompanhavam a imagem de Nossa Senhora durante os festejos da igreja, sendo que o momento da coroação, no mês de maio, quando todos os anjos estavam no altar, era sempre o grande evento da cidade.
Quando a imagem de Nossa Senhora de Fátima veio de Portugal ao Brasil em peregrinação, em 1954, foi levada a minha cidade, o Ipu. Só que para acompanhar a imagem da santa somente os anjos brancos e louros podiam participar do cortejo. Eu tinha dez anos e minha irmã seis anos apenas. Minha mãe era costureira e fazia a nossa roupa de anjo com verdadeiro esmero, as asas eram verdadeiras, de penas de garças apanhadas por um ribeirinho de sua amizade.
Logo as beatas seguidoras das decisões da paróquia foram até minha casa, na Rua da Goela, comunicar que eu e minha irmã, sendo pretas, não tão pretas, mas pardas, não poderíamos acompanhar a imagem que vinha de Portugal, mas os nossos trajes, sendo tão lindos, deveriam ser emprestados para o uso de duas crianças brancas que estavam dentro do critério racial da igreja, mas não possuíam as roupas.
Minha mãe, dona Nenê Torres, com pouca delicadeza, disse não àquela demonstração de racismo praticada pela igreja e pelo poder dominante da cidade. Acho que ela nem compreendia bem, mas compreendia que na cidade o poder econômico, político e religioso era exercido pelos brancos, oriundos dos que tomaram o país pelas capitanias hereditárias, uma questão que se misturava também com riqueza e pobreza.
Esquisito nisso tudo é que o vigário da paróquia na época era preto.
No dia em que a santa desfilou em procissão, com seus anjos brancos, alguns com cabelos pintados de louro, para a brancura ser completa, a minha família não participou. Mas assistimos da janela da nossa casa a passagem da imagem da santa, eu e minha irmã que ainda é mais preta do que eu, com os nossos trajes maravilhosos. Evidentemente que chamou a atenção de todos que acompanhavam a procissão.
Foi assim a minha primeira experiência com o racismo estrutural.
O Brasil viveu 300 anos de escravidão, nos lembramos disso no último dia 13 de maio, por força da assinatura da Lei Áurea pela princesa Izabel.
Com certeza, a nossa maior desventura, essa desigualdade que se aprofunda a cada dia, tem suas raízes no processo de escravidão, do qual nunca nos libertamos.
O processo de escravidão aconteceu em plena época do mercantilismo, quando o avanço das navegações pelo mundo e o surgimento da manufatura que deu origem ao processo industrial, com a Europa dominando o mundo.
No Brasil, com a posse das terras indígenas pelos portugueses, houve a tentativa de escravização dos índios, e, não acontecendo, tratou-se de dizimá-los através do extermínio e/ou da conversão religiosa, tudo em nome do Estado (o reino de Portugal), de Deus (os jesuítas), e das ações mercantilistas, prenuncio do modelo capitalista de produção.
No regime escravista praticado no Brasil, o africano com pele de cor preta era considerado um ser inferior, uma mercadoria, comprado no tráfico negreiro como se fosse uma máquina ou uma ferramenta de trabalho, constituindo assim uma força de trabalho pertencente ao seu dono. Na verdade, alguns historiadores falam que o escravo trazido da África era o capital do senhor no século 16, o auge do processo de escravidão, na transição para o capitalismo.
A jornada diária de trabalho poderia se estender por até 20 horas por dia, e o trabalho no engenho era mais pesado e perigoso que trabalhar nas plantações.
“A escravidão no Brasil foi cruel e desumana e suas consequências, mesmo passados mais de 130 anos da abolição, ainda são perceptíveis. A pobreza, a violência e a discriminação que afetam os negros no Brasil são um reflexo direto de um país que normalizou o preconceito contra esse grupo e o deixou à margem da sociedade.
Importante nos atentarmos que a escravidão também afetou milhões de indígenas e disseminou preconceitos em nosso país contra esse grupo também. O reflexo direto disso, além do próprio preconceito contra os indígenas, foi a redução populacional desses povos, que de milhões de habitantes, no século XVI, passaram para cerca de 800 mil, atualmente”, segundo o IBGE. (Mundo Educação)
Passada a escravidão, após o 13 de maio de 1988, a população negra foi jogada nas periferias das cidades sem terra para viver e outros direitos que lhes concedessem uma vida digna. A população continua à margem dos seus direitos de cidadania em processo de extinção até hoje, haja vista os conflitos que acontecem e se intensificaram ultimamente na Amazônia.
Os governos republicanos, após a abolição, trataram de construir uma sociedade plurirracial, sem conflitos no imaginário da população. “Uma herança da escravidão particularmente sentida até os dias atuais seria a naturalização da desigualdade em nossa sociedade”, explica Ricardo Alexandre Ferreira, doutor em História e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp – Campus Franca).
A população negra no Brasil está majoritariamente inserida, até hoje, em situação de pobreza, morando nas periferias urbanas, sem assistência básica que lhe chegue através das políticas públicas previstas na Constituição de 1988. Segundo Maria Teresa Manfredo, pesquisadora da Universidade de Campinas, “bebês negros nascem com peso inferior a bebês brancos e têm maior probabilidade de morrer antes de completarem um ano de idade, além de menor probabilidade de frequentar uma creche. São também os brasileiros negros que apresentam as mais altas taxas de repetência na escola, o que muitas vezes os leva a abandonar os estudos em níveis educacionais inferiores aos dos brancos”.
Ainda acrescenta que jovens negros morrem de forma violenta em maior número que jovens brancos e têm probabilidades menores de encontrar um emprego. Quando empregados, recebem menos da metade do salário pago aos brancos, aposentam-se mais tarde e com rendimentos inferiores.
Segundo Maria Teresa, “a naturalização da desigualdade social é tratada no livro A Ralé Brasileira, de Jessé Souza, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em que o autor expõe o drama histórico da sociedade brasileira: a reprodução de uma sociedade que considera normal e aceitável ter “gente” de um lado e “subgente” de outro; uma sociedade discriminatória que classifica seres humanos em diferentes categorias, de acordo com sua posição econômica.
Toda essa situação vem à tona e se torna pior nesse momento de pandemia por um lado, e do desmonte das políticas públicas já implantadas no país por outro lado. Algumas instituições têm funcionado como se os dirigentes fossem os “capitães do mato” da era moderna.
O negacionismo tem sido a estratégia utilizada para se instalar oficialmente o desmonte das políticas de direitos humanos, de educação, de meio ambiente, de saúde, do desarmamento e abre caminho para a oficialização da grilagem de terras, a institucionalização das milícias.
Se considerarmos o período iniciado pela redemocratização a as políticas públicas postas em prática até então, o nível de institucionalização de práticas bolsonaristas parece indicar um momento muito difícil para o país, sendo que tudo isso vem se agudizando gradual e rapidamente desde 2019. Assim, situações que antes eram vistas como resultantes da não-atuação estatal e da não-efetividade de direitos (exemplo: lentidão nos processos de demarcação de terras indígenas) têm sido agora articuladas como ações estatais institucionalmente “aceitas”.
Segundo é citado num texto de Priscyla Joca e Luciana Nóbrega em Brasil de Fato, “diante de tudo, (quase) nada mais nos assombra, embora devesse nos assombrar, porque todo dia é um passo adiante no progressivo esvaziamento de sentido que nos comunica Usha Velasco. Coisas que ontem nos pareciam absurdas de serem ditas ou defendidas passam a ser entoadas à luz do dia, sem nenhum pudor, em um ambiente de conivência entre os poderes estatais e a sociedade empresarial-midiática”
A mídia registrou em vídeo esta semana que passou um deputado federal em discussão ameaçadora às mulheres, também deputadas federais, numa reunião da comissão de Constituição e Justiça, na qual se proclamou matador de pessoas. E fica por isso mesmo.
E a sociedade se obriga a conviver com toda essa intemperança, num momento em que a pandemia atinge 435 mil famílias e que a pobreza atinge maior número de pessoas, com 12,8% dos brasileiros vivendo abaixo do nível de pobreza. (FGV-PNAD)
Com 14,4 milhões de pessoas desempregadas, o que é um indicador que chama a atenção para o processo de desigualdade no país, seguimos na tentativa de encontrar formas para que o nosso país consiga amenizar essa situação de tolerância com tanta desventura.
*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.
Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
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