Interdições de ontem e de hoje

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Em 16.05.2021

Por conta do 13 de maio, data da Abolição da Escravatura no país, procurou-se na vida, a comprovação de que a comunidade preta organiza o mundo de uma forma própria, usando toda a riqueza do pensamento afro-centrado com uma reflexão própria coerente sobre o mundo e o destino das pessoas.

Verificamos que na Espanha, em 2007, foi aprovada uma lei dando prazo até 2015 para a inserção de mulheres em órgãos máximos de direção. Na Alemanha, o ministro da Justiça, Heiko Maas, considerou as cotas para mulheres “a maior contribuição de direitos iguais desde que o direito ao voto para mulheres foi introduzido”.

A Noruega vem desde 2003 inspirando os demais países da União Europeia ao criar uma lei que obrigava as empresas a terem ao menos 40% de participação feminina nos Conselhos de Administração, no prazo de cinco anos. Apesar das previsões catastróficas e dos argumentos de falta de experiência ou talento, uma década depois as empresas norueguesas se tornaram mais competitivas.

Na França, Bélgica, Holanda, Itália e Islândia, desde 2011, temos cotas femininas que variam de 33% a 40% nas empresas. O Fundo Monetário Internacional (FMI) defende que uma mesma quantidade de mulheres e homens estejam no mercado de trabalho, situando que tal medida representou um aumento significativo das economias nacionais – 5% no caso dos Estados Unidos, 9% no Japão e 34% no Egito.

Todos estes dados recolhidos estão disponíveis na internet. Deste modo, temos o reconhecimento dos valores negados às mulheres, apontando para os que estão sendo afirmados e mostrando que pessoas concretas vivenciam as consequências negativas de um sistema de privilégios, mas que buscam, a seu modo, caminhar em direção a um futuro.

Essas referências sobre mulheres mostram como vivemos na era da Inteligência Artificial (AI) e do uso indiscriminado da internet, que pode esclarecer, mas também manipular e até cancelar pessoas.

Analisando o documentário Coded Bias, da Netflix, temos como ponto de partida uma realidade a que todos estamos submetidos. Nele, a pesquisadora negra Joy Buolamwini, do MIT, descobriu falhas na tecnologia de reconhecimento facial, que não reconhecia negros. Tal fato mostra como o sistema de Inteligência Artificial (IA) reproduz matematicamente o pensamento hegemônico, machista e branco do mundo europeu, usando modelos de aprendizagem de máquina para replicar nosso mundo como ele é.

Joy Buolamwini prova que o reconhecimento facial usado pela polícia irá tornar as pessoas pobres mais marginalizadas ainda, além de mostrar como o uso nas empresas para seleção de funcionários usando a IA excluiu todas as mulheres de cargos de confiança, priorizou atendimento hospitalar para pessoas brancas, rejeitando as pessoas pretas. As máquinas recompensam os ricos e punem os pobres pelas informações recebidas, sob o manto da neutralidade, fornecendo créditos ou rejeitando atendimentos.

As máquinas no sistema bancário recompensam os ricos e punem os pobres pelas informações recebidas, sob o manto da neutralidade, fornecendo créditos ou rejeitando atendimentos.

No Brasil, estudos sobre as desigualdades entre homens e mulheres no mercado de trabalho nos permitem afirmar que as mulheres negras sofrem mais discriminação do que as demais. Uma avaliação institucional possibilita a identificação da força funcional de cada empresa e o tempo médio que trabalhadores e trabalhadoras levam de um cargo para outro, mas ainda está muito longe de um posicionamento isento de discriminações.

Os posicionamentos de descrença na competência das mulheres nos fazem lembrar que as máquinas são programadas por pessoas e que reproduzem estes mesmos olhares preconceituosos.

Nos voltamos aqui para os movimentos específicos de mulheres negras, sendo que as primeiras organizações, segundo Lélia Gonzalez (1985), surgem dentro do Movimento Negro, destacando-se a contribuição de Maria Beatriz Nascimento que organizou em 1972, na Universidade Federal Fluminense, a Semana de Cultura Negra, seguida dos históricos encontros nas Faculdades Candido Mendes.

Aliás, importar destacar que o Centro de Estudos Afro-Asiáticos, departamento de pesquisa da Cândido Mendes, reuniu toda uma nova geração negra para discutir o racismo e suas práticas, enquanto forma de exclusão da comunidade afro-brasileira.

Nesse cenário de debate público contra o racismo, as mulheres negras sempre se destacaram por discutirem o seu dia-a-dia caracterizado pela discriminação racial e pelo machismo, não só de homens brancos, mas também de negros.

Lembro aqui o surgimento, em 1983, do Coletivo de Mulheres Negras de São Paulo, com Teresa Santos, que desde o início enfocou a dimensão de tripla discriminação: como mulheres, trabalhadoras e negras, e buscando trazer novas formas de se perceber as mulheres negras segundo as tradições afro-brasileiras.

Na insurgência de vozes negras femininas destaca-se também a escritora e ativista de direitos humanos, Alzira Rufino, nos anos 1980 e 1990, na Casa de Cultura da Mulher Negra de Santos, na Baixada Santista, denunciando a opressão e exploração das empregadas domésticas por suas patroas. E aí que nasce uma expressão ícone do ativismo das mulheres negras a Revista Eparrei, da qual Alzira era editora e na qual a hoje reconhecidíssima Djamila Ribeiro também deu seus primeiros passos na luta contra o racismo e o sexismo.

Já o Coletivo de Mulheres GÉLÈDES, na cidade de São Paulo, criado por Sueli Carneiro, em 1988, buscou reeditar as sociedades secretas femininas africanas, que colocam as mulheres com poderes equivalentes aos dos homens e vistas por eles como iguais.

A força das mulheres negras lideranças em comunidades de favela também é incontestável. Benedita da Silva e Jurema Batista, no Rio de Janeiro, são exemplos disso. E não deixaram de imprimir essa garra na criação do Nzinga/Coletivo de Mulheres Negras, em 1983. Esse coletivo reuniu mulheres integrantes do movimento negro, associações de moradores de bairros e favelas, tendo como fundadoras Lélia Gonzalez, entre muitas outras visionárias guerreiras negras do estado.

Esses exemplos de organização política das mulheres negras brasileiras têm produzido múltiplas vozes de insubordinação e estratégias de enfrentamento à discriminação racial e de gênero. A sua maneira própria, elas têm atuado como a cientista Joy Buolamwini, apresentando as múltiplas faces do racismo.

Ou seja, se as mulheres pretas formam o setor mais explorado e mais oprimido da sociedade brasileira, são a esmagadora maioria entre aqueles que vivem na pobreza, nas favelas e bairros de periferia, enfrentam o desemprego e a informalidade e são submetidas a constante discriminações por serem mulheres, pretas e pobres, importa que dominemos o debate sobre as novas tecnologias discriminatórias como o uso da Inteligência Artificial.  

 Precisamos dominar a tecnologia e ter leis que defendam nossos direitos de cidadania, tendo consciência deque a Inteligência Artificial preserva o mesmo olhar de quem a programou, estando muito longe da neutralidade.

Neste mês, voltado para a reflexão sobre os direitos humanos da população negra, deixamos como conclusão o poema, na voz e arte, de Conceição Evaristo que fala de nossa luta que vem de longe.

Vozes-mulheres

A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.

A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.

A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e fome.

A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância

O eco da vida – liberdade

*Helena Theodoro é Bacharel em Direito e Pedagoga, Mestre em Educação, Doutora em Filosofia, Pós-Doutora em História Comparada. Pesquisadora da história e da cultura afro-brasileira, escolas de samba, religiões e espiritualidade de matriz africana, educação, processos culturais, sexualidade. 

é Historiadora e pesquisadora de relações raciais e de gênero. É vice-presidente do Conselho Curador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Comparada do IFCS/UFRJ. Foi secretária de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro, na gestão Benedita da Silva e conselheira do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.

Artigo publicado originalmente no portal da revista Congresso em Foco.

Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.

Foto destaque: Mariana Maiara/Olhares Negros