Corrupção e desenvolvimento sustentável: o mundo acompanha o retrocesso no Brasil
Alessandra Nilo*
Em 10.07.2021
Enquanto quase 200 países se reúnem no Fórum Político de Alto Nível da ONU para mostrar seus avanços em relação aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável[1] e ao controle da pandemia, a CPI da Covid no Senado Federal segue expondo meandros do modus operandi do governo federal que chamam cada vez mais atenção na comunidade internacional. Depois de ter gasto apenas 9% do orçamento destinado à pandemia em 2020, agora o próprio presidente se encontra mergulhado em escandalosas negociações de compra de vacinas, um esquema de corrupção que sapateia sobre mais de meio milhão de pessoas perdidas para o caos instalado no país.
As evidências públicas do desmantelo nacional reforçam as denúncias feitas pelas organizações da sociedade civil em diversos fóruns e não é por acaso que crescem as tensões nas relações externas, políticas e comerciais do país, tendência que se intensifica na medida em que o Brasil, além de desacreditado, torna-se um ambiente inseguro para negócios, com governança cada vez mais opaca e incapaz de responder à pandemia e ao conjunto de crises que enfrenta.
O compromisso que o Brasil assinou na ONU prevê, em seu Objetivo 16, a promoção do Estado de Direito, a redução substancial da corrupção e do suborno em todas as suas formas, o desenvolvimento de instituições eficazes, responsáveis e transparentes, a tomada de decisão responsiva, inclusiva, participativa e representativa em todos os níveis e o acesso público à informação e proteção às liberdades fundamentais. E, em todos esses quesitos, o Brasil retrocedeu gravemente, como mostrará o V Relatório Luz da Sociedade Civil sobre a Agenda 2030 no Brasil, do GT Agenda 2030, no dia 12 de julho, às 10h, em audiência pública no Congresso Nacional.
O Relatório, único documento que analisa o status nacional frente à Agenda 2030, apresenta a fotografia de um país cada vez mais distante do desenvolvimento sustentável. Aqui quase todos os mecanismos que viabilizavam o funcionamento das instâncias de controle social e o arcabouço de participação da sociedade civil nos processos de formulação, implementação, acompanhamento e fiscalização de políticas públicas, foram enfraquecidos ou eliminados com a edição do Decreto 9.759/2019 que extinguiu, inclusive, a própria Comissão Nacional dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), criada em 2016 no governo Michel Temer.
Tais estruturas são pilares da democracia participativa e o país vinha, notadamente desde Fernando Henrique Cardoso, avançando via políticas e práticas que nos tornaram referencial para o mundo. Isso explica por que, até bem pouco tempo, não aventávamos a possibilidade de uma norma como essa que também revogou o Decreto 8.243/2014, instituidor da Política Nacional de Participação Social (PNPS) e que afetou todas as políticas publicas nacionais. Esses fatos são gravíssimos diante de uma Constituição que garante a participação popular (parágrafo único do art. 1º; art. 194, inciso VII) e, para a comunidade internacional, também diante da Agenda 2030 que reforça a participação social no ODS 16 – Paz, Justiça e Instituições Eficazes e em várias das suas metas.
Outros retrocessos brasileiros apontados no Relatório Luz 2021 são a baixa transparência e a ausência de dados, que comprometem tanto o acesso público à informação quanto a própria análise e formulação de políticas eficazes, colocando em xeque o ODS 16 como um todo. Além disso, também impacta no controle social, já que o processo de monitoramento dos três poderes, seja em esfera municipal, estadual ou federal, depende do acesso aos dados, atividades e orçamentos, o que vem sendo sistemática e estrategicamente destruído pelo governo Bolsonaro, por exemplo, com a desregulamentação dos sistemas de fiscalização ambiental, violações da Lei de Acesso à Informação, o cancelamento e posterior corte drástico nos recursos do censo demográfico e os problemas na base de dados do Sistema Único de Saúde (SUS).
Uma arquitetura de dados e informações acessíveis à população e às instituições de pesquisa é parte fundamental do Estado democrático de direito e é gravíssimo que no Brasil o governo persiga cientistas, negue evidências e que, quando cobrado por profissionais da imprensa, responda de forma abusiva e violenta.
E, finalmente, no contexto internacional, pesam e muito os retrocessos brasileiros no combate à corrupção, um tema cada vez mais tensionado na esfera global. A esse respeito, em um seminário realizado recentemente pela Frente Parlamentar Mista de Apoio aos ODS e pelo GT Agenda 2030, o pesquisador Fernando Forattini mostrou como a corrupção afeta a sociedade de forma integral e é ela mesma a maior responsável por mortes no mundo, depois das guerras, num ciclo vicioso que gera, na população, um sentimento de injustiça e impunibilidade e que leva à descrença na Justiça, nas instituições como um todo.
Assim, além de intensificar a narrativa de que, para acabar com a corrupção, não é preciso deslegitimar o Congresso, o Executivo, tampouco o Judiciário, o discurso anticorrupção deveria ser propositivo e reforçar a importância do papel das instituições democráticas, exatamente o oposto do que vem acontecendo no Brasil. Como frisou Barbara Krysttal, gestora de políticas públicas, no referido evento, temos um verdadeiro arsenal de ferramentas tecnológicas modernas e eficientes que podem ser utilizadas em todas as etapas de controle interno (auditoria, controladoria, ouvidoria e corregedoria) e em todas as fases das políticas públicas, não apenas no ciclo final, quando se busca identificar culpados.
Evidentemente, a corrupção é assunto complexo, mas precisa ser enfrentado de maneira responsável. E, ao lado do controle interno, o controle social ajuda nessa tarefa e por isso precisa ser restabelecido de forma plena, por meio da participação social legítima em colegiados e do acesso transparente aos dados governamentais. Não porque precisamos nos apresentar melhor frente à comunidade internacional no que diz respeito ao ODS 16, mas porque não há outra maneira de retomarmos o caminho de desenvolvimento sustentável que o Brasil parece estar abandonando, como mostra o Relatório Luz 2021 a ser divulgado na semana que vem.
Referência
[1] Os ODS são o plano operativo da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, pactuada em 2015 por 193 países-membros da Organização nas Nações Unidas (ONU), incluindo o Brasil, que liderou a construção da Resolução A/70/2015, não por acaso completamente alinhada aos princípios da Constituição Federal de 1988.