Tráfico de trabalhadores: uma realidade que o reformador trabalhista não quis ver
Lygia Maria de Godoy Batista Cavalcanti*
Em 08.08.2021
Dentre os itens relacionados na alínea “a”, art. 3º do Protocolo de Palermo, aprovado pela Resolução da Assembleia Geral nº. 55/25, da ONU, para definir a expressão “tráfico de pessoas” estão o recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de pessoas, o trabalho ou serviços forçados, […] escravatura ou práticas similares à escravatura e a servidão.
Vivenciei, quando na jurisdição de Goianinha/RN, o recrutamento de trabalhadores realizado por um intermediário que se convencionou chamar “gato”, usando para tal, falsas promessas de trabalho e bons salários. Os trabalhadores são levados para o sul/sudeste/centro-oeste do país, e recebem dos recrutadores um adiantamento para o custeio das despesas com a viagem – primeiro passo para a servidão. Além desse adiantamento, a comida e os instrumentos para o trabalho são considerados dívidas, o que resulta na submissão do trabalhador, forçando-o a desempenhar qualquer tipo de atividade. Alojados em galpões insalubres, sem água potável e sem as mínimas condições sanitárias, eles são impedidos, ainda, de retornarem as suas cidades enquanto não quitarem suas dívidas.
Inimaginável que, dois séculos após a abolição da escravatura, o mundo retrocedesse a abominável prática do tráfico humano. Estima-se uma movimentação de mais de 150 bilhões de dólares com o referido crime. [1] De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) [2], em 2016, no mundo, mais de 40 milhões de pessoas eram vítimas da escravidão moderna, dessas, 24,9 milhões eram forçadas ao trabalho, sob ameaças diversas. À luz do Relatório Global sobre o Tráfico de Pessoas 2016, das vítimas, quase um terço eram crianças, e 71% mulheres e meninas. [3]
O considerável aumento dessa prática no seio da União Europeia, foi tema de uma conferência realizada pela Organización para la Seguridad y la Cooperação en Europa (OSCE – atualmente formada por 57 países membros) [4], em 2011, em Viena, ocasião em que se alertou para as centenas de milhares de trabalhadores sujeitos à execração da escravidão. Os imigrantes são os alvos principais, a exemplo das comoventes histórias de Seba, garota de 22 anos, libertada pelo Comité Française Contre L’esclavage Moderne (na ocasião, o CCMS estimou haver em Paris cerca de 3.000 escravos domésticos) e também de Safia Kjarun, de 20 anos, ambas escravizadas e torturadas por suas patroas.[5] Capturados em redes mafiosas, os imigrantes acabam obrigados a trabalhar em situação análoga a do escravismo, além da mendicância forçada, pickpocketing, recebimento, transporte e venda de bens e drogas roubados.
A escravidão contemporânea, uma realidade mundial, está associada ao desemprego, pobreza, discriminação, e, sobretudo, ao tráfico de pessoas. Tal prática manifesta-se na clandestinidade e se faz marcada por organizações criminosas que, com autoritarismo, segregação social e desrespeito aos direitos humanos, subjugam trabalhadores a condições degradantes de trabalho.
Apesar de real, a escravidão contemporânea é invisível – as pessoas são mantidas na clandestinidade. Ao desembarcarem nos países dos “sonhos” têm confiscados os seus documentos, tornando-se inexistentes perante a lei. Tais condições os levam ao último grau de vulnerabilidade, alienação e estranhamento.
Nessa expansão do tráfico de escravos modernos, o modelo econômico dominante carrega uma grande responsabilidade. A globalização neoliberal – prevalecente nas últimas três décadas graças às terapias de choque com efeitos devastadores nas categorias mais frágeis da população – acarreta um custo social exorbitante.
Em nome do livre comércio, os grandes grupos multinacionais fabricam e vendem em todo o mundo, sempre em busca de produzirem em regiões onde a mão de obra é mais barata. Desse modo, estabelece a competitividade como principal força motriz e constitui, com efeito, a mercantilização do trabalho e dos trabalhadores.
As empresas multinacionais, ao realocarem seus centros de produção em escala global, estimulam a competição entre empregados de todo o planeta. O objetivo é minimizar custos de produção e reduzir salários, implicando, com isto, a desestabilização do mercado de trabalho e a deterioração das condições de trabalho.
O obscurantismo do que realmente está em jogo é a arma proeminente no arsenal dos apologistas do neoliberalismo, promotor da desigualdade. Lamentavelmente, o neoliberalismo prega as virtudes da “igualdade de oportunidades”, mesmo que o registro das realizações efetivas não avance, em revés à verdadeira igualdade.[6]
Fato é que as estatísticas em relação ao trabalho e emprego, inclusive dos países do capitalismo avançado, revelam um quadro muito deprimente onde se destacam desemprego, precarização, número alarmante de imigração e formas degradantes de trabalho a que o ser humano está submetido.
No tema da centralidade do trabalho, à dimensão econômica do trabalho que entrelaça sustento, consumo, produção, geração, distribuição e apropriação da riqueza, se agrega o aspecto de transcendência humana que está implicado no trabalho e que não pode ser abstraído sem o equívoco de reduzir-se seu sentido e sua importância a mero instrumento do capital e meio de subsistência.
Naturalmente, a legitimação das brutais restrições que emergem da crise estrutural do capital é apresentada num pacote característico de suntuosa hipocrisia, adornado com expressões do tipo de excelência, flexibilidade e liberdade.
O trabalho não é um fim em si mesmo. É um meio. Um meio pelo qual a pessoa obtém seu sustento. Mas não apenas isso, conforme expressa Aldacy Coutinho, “O trabalho é salário, mas salário não é tudo; trabalho sempre será um processo de identificação dos momentos da reprodução social, reinventada a cada momento, e a conquista de condições dignas da vida expressas em direitos”.[7]
Pelo trabalho a pessoa se expressa no mundo sensível, desenvolvendo habilidades distintas das manifestadas por outras espécies de seres vivos, resultado da inteligência que é capaz de intervir no meio ambiente e produzir um mundo artificial de coisas, e até mesmo viabilizar a conquista do espaço sideral. É através do trabalho que o ser humano alcança sua autonomia como sujeito integrante das relações sociais, da vida em comunidade – ganha identidade social, realiza e se realiza pelo trabalho, ainda que as possibilidades do ser não se limitem às dimensões do trabalho.
Por todos esses aspectos é que o trabalho tem sido reconhecido como um direito humano fundamental, e como tal não deve, a pessoa, apenas ter o direito de ter um trabalho, mas o direito de ter um trabalho livremente escolhido e capaz de proporcionar condições justas para uma vida digna e de qualidade. [8]
A dupla expectativa dimensional quanto ao trabalho, como meio de prover a subsistência e enquanto fator de identificação e realização do indivíduo, parece intrigante numa época em que a pauta de reivindicações da classe trabalhadora tem se mostrado apenas uma – o emprego – ante a realidade de um mercado heterogêneo e fragmentado que nega o acesso ao trabalho à grande maioria da população mundial, sem poupar nenhuma esfera de categoria profissional.
A ressignificação do trabalho e enchê-lo de sentido expressa a ânsia de quem se debruça sobre o tema e observa o (dis)funcionamento social que a fragmentação e redução de significado do trabalho têm provocado em milhões de vidas que veem, em sua atividade, um mero exercício mecanicista provedor dos meios de subsistência, sem qualquer realização de foro íntimo.
A ilusão da criação de empregos através do mecanismo da flexibilização, instrumentalizada pela terceirização, politicamente estimulada, representa o aumento da desigualdade nos benefícios agora oferecidos ao trabalhador.
Naturalmente, este é um processo cheio de contradições, como acontece em todos os lugares nos quais os imperativos do sistema do capital impõem seu domínio. Essas contradições não se manifestam apenas nas enormes diferenças entre os grupos de trabalhadores de qualquer país em particular ou globalmente, ainda que não seja possível o nivelamento por cima, o que modificaria a estrutura do sistema do capital; decididamente há um nivelamento por baixo, o que afeta diretamente a força de trabalho até nos países em que o capitalismo é mais avançado.
Esse fato é indiscutivelmente concomitante com o aparecimento de grandes perturbações no processo de expansão e acumulação do capital das últimas duas décadas, que assumiu a forma de uma perigosa tendência ao nivelamento do índice diferencial da exploração.
Nesse quadro, observa-se que a redução do conteúdo do direito ao trabalho, que importaria na afirmação do direito ao trabalho unicamente com base na teoria das necessidades, esvazia da noção de trabalho o seu sentido emancipador, de transformação do real, no curso do qual se dá a descoberta e o desenvolvimento das potencialidades humanas.
*Lygia Maria de Godoy Batista Cavalcanti é doutora e mestra em Sociedad Democrática, Estado y Derecho pela Universidad del País Vasco, Espanha. Mestra em Direito Político e Econômico pela Universidade Mackenzie, São Paulo. Juíza do Trabalho da 21ª Região/RN. Membra da Associação Juízes para a Democracia.
Notas:
1) OIT, “Profits and Poverty: The Economics of Forced Labour”. 2014.
2) Global estimates of modern slavery: forced labour and forced marriage International Labour Office (ILO), Geneva, 2017
3) Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, 17 de março de 2017).
4) A Global Alliance Against Forced Labour
5) PARISOT, T. Quand l’immigration tourne à l’esclavage, Le Monde Fr, jun. 1998.
6) MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo, p. 157.
7) COUTINHO. A. R. A autonomia privada: em busca da defesa dos direitos funda – mentais dos trabalhadores. In: SARLET, Ingo Wolfgang. (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre, 2006, p. 170.
8) Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Art. XXII e XXIII, 1.
Artigo publicado originalmente no portal Justificando
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