O patriarcado não foi feito para homens negros

Por

Salomão Rodrigues da Silva Neto*

Em 20.08.2021

“Cadê meu celular?

Eu vou ligar pro 180

Vou entregar teu nome

E explicar meu endereço

Aqui você não entra mais

Eu digo que não te conheço

E jogo água fervendo

Se você se aventurar” 

(Maria da Vila Matilde, Elza Soares)

Recentemente vivenciamos o aniversário de quinze anos da Lei Maria da Penha. Tal legislação prevê que é obrigação de todos – da Defensoria, do Judiciário, do Ministério Público, das polícias, da sociedade e de cada um individualmente – a missão de contribuir para a erradicação de  todas as formas de violência contra a mulher, especialmente a doméstica. Logo em seu início, o diploma elenca formalmente a universalização da proteção de gênero, afirmando que independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, a todas as mulheres devem ser asseguradas as oportunidades e facilidades para viverem sem violência, preservarem sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. Entretanto, pesquisas e estudos têm demonstrado que também nesse âmbito o racismo cordial brasileiro tem grande impacto na vida ou para a morte das mulheres negras.

Dados do Atlas da Violência/2020 [1] apontam que em 2018 uma mulher foi assassinada no Brasil a cada duas horas, totalizando 4.519 vítimas, incluídas as ocorrências de feminicídio. A pesquisa também expõe que no mesmo ano, 68% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras. Ainda, fazendo uma análise do período entre 2008 e 2018 (período em que já estava em vigência a Lei Maria da Penha), a desigualdade racial de proteção se torna mais evidente: enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras caiu 11,7%, a taxa entre as mulheres negras aumentou 12,4%. Os índices demonstram que os desafios antirracistas para as políticas públicas de gênero no Brasil ainda são gigantescos e muito ainda há para ser superado nesse país com bases coloniais, fundado no racismo e no sexismo e que, no entrecruzamento das dinâmicas de opressão, perpetua a mulher branca como sujeita universal a ser alcançada pelas redes de proteção. Ainda não temos muito a comemorar no que diz respeito às mulheres negras.

Para além de assumir uma postura ativa no combate à violência contra a mulher dentro dos ambientes tidos como masculinos, a importância de nós, como homens negros, falarmos sobre gênero, raça e classe, demonstra sobretudo respeito às lutas constantes marcadas pela força e pela dor das mulheres pretas e para as quais Vilma Piedade [2] unificou como Dororidade, ou seja, as vivências que são acompanhadas das dores de perdas contínuas, tais como a de seus filhos para a violência letal e de seus maridos e irmãos para os cárceres e para o desemprego, e ao mesmo tempo atingida pela violência doméstica e familiar, com todas as barreiras de superação que são inerentes a suas individualidades. Essa dor é vivenciada pelas mulheres negras desde os primeiros passos daquele momento de onde nós somos produtos e deveríamos ter o maior zelo e admiração, a maternidade. A dor da violência obstétrica tem cor no Brasil e ela é negra. [3]

Os dados de como a violência atinge em maior proporção as mulheres negras no Brasil, coloca-nos a refletir sobre a persistente invisibilidade das pautas levantadas pelos movimentos de mulheres negras no nosso país. E aqui é preciso ressaltar que dentro das instituições responsáveis pelo combate à violência contra a mulher e pelo seu acolhimento, a faceta do racismo por omissão  é revelado por meio da inexistência ou insuficiência de dados acerca do perfil étnico-racial das mulheres que conseguem alcançar as polícias ou os núcleos especializados dos diversos órgãos públicos. É comum a identidade racial constar nos formulários de atendimento, mas não serem devidamente preenchidos e publicizados, implicando também na dificuldade de construção de políticas públicas essenciais para o alcance de mulheres pretas e pardas. Precisamos saber a cor das Marias de Vila Matilde que discam o 180 e acompanhar qual o tratamento tem sido dado aos casos de violência denunciados por essas mulheres.

Há muitas décadas Lélia Gonzalez já apontava sobre a ausência de discussões no seio do feminismo para o combate de outra discriminação tão grave quanto à de gênero e também sofrida pela mulher: a de caráter racial. Em suas geniais contribuições, ao conclamar um feminismo afro-latino-americano, a autora ressalta a realidade histórica amefricana de que para as mulheres negras desta região a consciência da opressão, antes de qualquer outra categoria, ocorreu por causa da raça.[4] As características da exploração de classe e da discriminação racial são comuns na luta de homens e mulheres negras, racialmente subordinados nesse país. Outra forte razão para continuarmos de mãos dadas e lutando com afinco pela libertação com respectivo acesso a direitos das mulheres negras, que são nossas mães, nossas companheiras, nossas filhas e nossas irmãs.

Por outro lado, conversar sobre essa temática também é uma forma de colocar-me à disposição, na esteira do pensamento de Patrícia Hill Collins [5], para superar as barreiras criadas por minhas experiências de opressão vinculadas às três categorias citadas com a construção de coalizões que efetivamente trarão mudanças sociais.

Tenho, de fato, empatia às causas levantadas pelas mulheres negras? O que e como tenho contribuído para a superação da realidade vivenciada por elas dentro dos meus espaços de convivência? Essas e outras perguntas similares têm me acompanhado ultimamente e com elas a responsabilidade de respondê-las com ações efetivas. Como grande obstáculo, surge a necessidade de superação de uma ideologia que foi internalizada especialmente nas mentes masculinas: o patriarcado. Entender a existência de uma estrutura hierárquica que colocam os homens em posições de vantagem em relação às mulheres desde os núcleos familiares até o ambiente de trabalho, embora difícil, é urgente e necessário, pois ao mesmo tempo que dita privilégios em razão do gênero, determinam padrões de masculinidade tóxica – modelo que não é voltado para os homens negros, mas por nós absorvido – que limitam nossas atitudes, por muitas vezes inibe nosso crescimento pessoal e chega a nos levar ao colapso. [6]

Quando interseccionamos a categoria raça e as representações sociais que elas engendram, com mais evidência enxergamos a urgência de rejeitarmos esse protótipo que subjuga cotidianamente os homens negros e, mais ainda, as mulheres negras no nosso país. Definitivamente, o patriarcado não nos contempla. O homem negro sequer é visualizado por essa ideologia – que tem o racismo como um de seus pilares – como possível detentor de poder. Precisamos fugir da ilusão de estarmos performando um papel que não se encaixa em nossos corpos, não só pelo fato de contribuirmos para os efeitos danosos sofridos pelas mulheres negras, mas também em razão da essencial busca de superação do nosso lado opressor.

A escrita de hoje é um convite (voltado para mim mesmo, mas também compartilhado), para uma imersão masculina nas lições do feminismo negro. Podemos ter como ponto de partida e orientação básica a afirmação de bell hooks [7] de que o feminismo é para todo mundo. Ele não é apenas para as mulheres e também não tem como objetivo apenas beneficiá-las. A luta que deve ser travada é da reeducação do mundo, a fim de imaginá-lo e construí-lo em uma perspectiva que, acolhendo as diferenças, suplante a desigualdade. O combate ao racismo e ao sexismo deve ser feito por todas, todes e todos, mas a assunção da responsabilidade e a construção de práticas concretas por parte dos homens negros constitui compromisso racialmente ético em relação a nossa ancestralidade. Essa deve ser nossa ORIentação.

*Salomão Rodrigues da Silva Neto é defensor público coordenador do Grupo de Trabalho pela Igualdade Racial da Defensoria Pública do Estado de Goiás

Artigo publicado originalmente no portal Justificando.

Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.

Foto destaque: Dave McClinton

 

Notas:

[1] – https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/24/atlas-da-violencia-2020

[2] – PIEDADE, Vilma. Dororidade. São Paulo: Editora Nós, 2017.

[3] – https://www.abrasco.org.br/site/noticias/8m-mulheres-negras-sofrem-mais-violencia-obstetrica/45463/

[4] – GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

[5] – COLLINS, Patricia Hill. Em direção a uma nova visão: Raça, classe e gênero como categorias de análise e reflexão. São Paulo: Sempreviva Organização Feminista, 2015. pp. 13-42.

[6] – BOLA, JJ. Seja homem: a masculinidade desmascarada. Porto Alegre: Dublinense, 2020.

[7] – hooks, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Rio de janeiro: Rosa dos Tempos, 2020.