A paz e a liberdade como escudos para fazer a guerra
Mirtes Cordeiro*
Em 28.02.2022
Sobre a guerra deflagrada contra a Ucrânia em pleno século XXI, o ex-presidente do Uruguai Pepe Mujica, com sua grande sabedoria, fruto da experiência de vida, nos alerta a todos que querer resolver conflitos entre homens que habitam o mesmo espaço neste mundo, através da guerra, é indicativo de que ainda estamos na pré-história, apesar dos grandes avanços tecnológicos.
De 1945, quando acabou a Segunda Guerra Mundial, até a queda do Muro de Berlim (09.11.1989) – anunciando o fracasso da experiência do socialismo real instituído pela União Soviética (URSS), criada em 1922 por Lenin, então líder da Revolução Bolchevique -, a Europa ficou dividida entre o leste, que “pertencia” à União Soviética liderada pela Rússia, e o oeste, que “pertencia” aos países do ocidente participantes e vencedores da Segunda Guerra (EUA, Reino Unido e França).
O sentimento era de pertencimento mesmo, dados os níveis de obediência e restrições das quais se tinha notícia.
Quem visitava Berlim Ocidental encontrava um muro de pedra, cimento e arame farpado que impedia que pessoas atravessassem a trágica fronteira. O muro foi palco de muitas perseguições e mortes que aconteciam quando alguém se atrevia a transpor, tentando ludibriar a guarda permanente. Famílias inteiras que se distribuíram em moradias distintas entre leste e oeste da cidade ficaram impedidas de ver ou visitar os parentes durante 45 anos.
Durante esse período a Alemanha chamada Oriental deveria se transformar em socialista, seguindo as orientações dos pressupostos da Revolução Socialista de outubro de 1917, liderada por Lenin, já implantado em outras repúblicas. O lado Ocidental receberia todos os incentivos para continuar se desenvolvendo no formato do modo de produção capitalista.
O muro na verdade era o instrumento rudimentar que emprestava visibilidade a todos sobre a nova forma de manutenção do grande troféu da guerra das forças aliadas (EUA, Reino Unido e França), a Alemanha.
Ao terminar a tragédia que foi a guerra, com a morte de cerca de 60 milhões de pessoas – dessas, 6 milhões eram judeus -, parecia tudo normal aos olhos do mundo sobrevivente aquela situação que foi logo se transformando noutro tipo de guerra, intitulada de Guerra Fria – espaço no qual se processavam trocas ou impedimentos de informações, espionagens e todos os tipos de intimidação à liberdade das pessoas que por vontade própria ou não, fossem convocadas à participação desse processo, muito complicado. Uma nova geopolítica mundial.
A dissolução da União Soviética ocorreu em 26 de dezembro de 1991, com reconhecimento da independência das antigas repúblicas.
Concorreu para a dissolução as denúncias e consequências dos crimes ocorridos no governo de Stalin: a falta de liberdade interna; o fechamento do sistema soviético para as nações externas pertencentes ao mundo capitalista; a baixa produtividade da indústria; a burocratização do sistema de governo acrescida de processo de corrupção; dificuldades econômicas necessárias à manutenção da população e dos gastos com a corrida armamentista.
Todo poder, decisões e controles emanavam do Partido Comunista, único. E as promessas de prosperidade e igualdade propagandeadas pelos veículos de comunicação estatais, faziam contrastes com os privilégios a uma classe que vivia à custa da riqueza controlada pelo governo.
Durante o período da Perestroika, concebido por Gorbatchov como a forma de fazer a transição para a concepção transparente de estado, tive a oportunidade de passar dois meses, agosto e setembro de 1987, com outras quatro companheiras do Partido Comunista Brasileiro (PCB) para conhecer o legado da política social desenvolvida na Rússia, Bielorrússia e Estônia.
Pudemos observar as dificuldades enfrentadas culturalmente pela população russa, que havia experimentado uma passagem tão drástica do regime feudal para o socialismo a ser construído, sob grande pressão da comunidade internacional.
Mas, naquele momento, o planejamento estatal cuidava para que todos frequentassem as escolas básicas, tivessem assistência à saúde, alimentos básicos, moradia digna. A política do pleno emprego foi ficando difícil se não havia aumento da produtividade e reposição do maquinário da indústria.
A coletivização do campo, da produção agropecuária, desde o início foi um grande problema, e como dizia Marx em O Capital, o fetiche da mercadoria perseguia a todos.
Havia também uma força que emergia do pensamento intelectual, nas universidades, que através de pesquisas apontava a estagnação da sociedade e, sobretudo, das consequências da falta de liberdade.
Posteriormente fui ter maior clareza sobre essas questões quando li o livro O fim do homem soviético, de autoria de Svetlana Aleksiévitch, ucraniana vencedora do prêmio Nobel de Literatura de 2015. Ela fala que apesar do povo russo ser acostumado a revoluções e grandes reviravoltas políticas, “assistiu espantado” ao silêncio que acompanhou a queda do império soviético e a passagem ao capitalismo. “A população se dividia entre os que almejavam a passagem para a democracia e os que lamentavam o fim da ideologia que havia dirigido suas vidas”.
A história não terminou com o fim do socialismo real. Mudou o rumo, a história se refaz sempre e o capitalismo, que vem produzindo com muita profundidade cada vez mais situações de desigualdades no mundo, tem sido responsável por muitas situações de conflitos e guerras pelo mundo afora, após a queda do Muro de Berlim, deixando rastros de verdadeira desordem e incompetência, como no Iraque e Afeganistão.
Hoje, podemos assistir a invasão da Ucrânia em seus detalhes pela televisão ou por celulares. É uma vergonha mundial. Não se pode aceitar mais a interferência de um país sobre outro, nem que a decisão tenha origem no desejo da população que instituiu o representante agressor.
O que acontece na Ucrânia atualmente tem como referência também a crise de 2014, quando uma maioria da população chamada pós-soviética se mobilizava por novas alianças com a Comunidade Europeia, sofrendo repressão com mais de cem mortes durante cerca de 90 dias, cujo processo foi muito bem documentado por jornalistas e participantes que se concentravam permanentemente na Praça Maidan, e pode ser visto através do filme Winter on Fire.
Essa guerra do presidente Putim, diferente da Segunda Guerra, é cibernética, e também é uma ameaça ao mundo, onde se usa a mais avançada tecnologia para o mapeamento dos pontos a serem atacados e os mísseis são detonados a partir de programas com controles remotos. Isso não nos impediu de observar a maldade do ser humano que ao dirigir o tanque russo passou por cima de um automóvel que seguia em sentido contrário. A imagem dessa insanidade viralizou nas redes sociais pelo mundo inteiro.
Também temos observado que protestos vêm acontecendo pelos países no mundo inteiro, bem como a atitude de abstenção da Índia e da China na reunião do Conselho da Organização das Nações Unidas (ONU). Putim e seus comparsas seguem isolados nesta atitude alucinada na sua busca incessante para refazer a história, do seu jeito.
A invocação da paz e da liberdade para o povo ucraniano e os territórios rebeldes, reconhecidos pela Rússia, é uma farsa.
Outras questões estão no fundo do conflito. O imperialismo americano nunca reconheceu de verdade que o socialismo real findou a sua história no formato em que foi concebido. Continuou estimulando o fortalecimento da Organização do Tratado do Atlêntico Norte (OTAN), arregimentando forças contra a Rússia e falando para o mundo que “comunistas comem criancinhas”. Parece que a seu modo, do seu jeito, o presidente da Rússia tenta rearrumar a história reabilitando antigos poderes.
Portanto, me alinho ao pensamento de Pepe Mujica. É preciso que se abandone o estágio em que nos encontramos e se tente melhorar a humanidade, “abandonando as guerras como forma de resolver os conflitos, o egoísmo, e em alguma medida trabalhar sobre nós mesmos, com a intenção de criar uma humanidade um pouco melhor, com empatia para aqueles que nos acompanham pela vida, mas seguimos prisioneiros de uma civilização que se confunde lutando sempre por mais riqueza para alguns, porém, com estancamento de valores e de solidariedade entre os humanos”.
Qual o sentido da vida humana se continuamos avançando com grande criatividade na ciência, mas não somos capazes de desenvolver uma responsabilidade coletiva com a sociedade em que vivemos?
Tarefa nossa é criar as condições para que crianças e os jovens aprendam que é possível construir um mundo melhor.
*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.
Foto: Internet