Aparências de felicidades e felicidades sem aparências

Por

Nelino Azevedo de Mendonça*

Em 08.07.2020

Atualmente, a busca pela felicidade tem nos posicionado numa corrida em que a largada tem sido tão injusta e desigual quanto às possibilidades de chegada. Essa corrida maluca para ser feliz gera distorções não apenas na busca como também no próprio sentido de felicidade e isso ocorre porque, em geral, sentimos que não somos felizes. Por isso há tantas pessoas que buscam a felicidade através de mentiras, prazeres desmedidos, de atitudes ilícitas e de tantas outras coisas nocivas ao corpo, à mente e ao espírito. Essa atitude desesperada pela felicidade tem muito a ver com a nossa condição de finitude (a finitude que nos impossibilita de alcançar a felicidade), pois queremos a felicidade aqui e agora.

A felicidade é bem mais do que um estado de espírito ou simplesmente uma escolha, trata-se muito mais de uma busca. Caso fosse uma escolha, a felicidade seria uma questão de opção – você optaria por ser infeliz, mais ou menos feliz ou feliz? Não me parece assertivo esse entendimento. É claro que escolhemos sermos felizes, mas essa escolha por si mesma não garante a felicidade para ninguém. Queremos a felicidade a todo custo porque temos pressa e é preciso que ela chegue até nós bem antes da nossa morte. Pois a felicidade nunca é o passado, nunca é o futuro, é sempre o presente. Chega-se ao cúmulo de buscar a felicidade na morte. Como diz Pascal: todo ser humano quer ser feliz, inclusive o que vai se enforcar. Mas, a questão aqui é que quem assim age, tentando negar a infelicidade pela felicidade na morte, está perdido numa distorção do verdadeiro sentido do que é felicidade. Afastar-se da infelicidade pela morte é tornar-se refém da própria infelicidade e vincular seus próximos a ela também. São essas aparências de felicidades que vão minando a condição humana e, por conseguinte, gerando angústias e sofrimentos que distanciam, ainda mais, a conquista de uma vida boa e feliz.

Para a maioria dos sábios antigos, a felicidade sempre teve um lugar de centralidade. Para o filósofo grego Epicuro (341 a. C.), a prudência é o princípio e o bem maior. É dela, de acordo com esse filósofo, que todas as outras virtudes se originam. É “ela que nos ensina que não existe vida feliz sem prudência, beleza e justiça, e que não existe prudência, beleza e justiça sem felicidade” (2002, p. 45). Isso porque a felicidade está vinculada de forma inseparável às virtudes e que toda virtude está ligada à felicidade (EPICURO, 2002). Desse modo, é possível compreender que é pela prudência que podemos evitar uma felicidade baseada nas aparências. E prudência é ter sabedoria, mas acima de tudo é agir com sabedoria, já que para os gregos felicidade é sabedoria. Para Comte-Sponville, “a sabedoria seria a felicidade na verdade” (2015, p. 12). Assim, toda felicidade que não esteja alicerçada na sabedoria e que não se expresse na confirmação da ética e do amor é uma felicidade de aparências.

Essa perspectiva que parte do entendimento de felicidade como afirmação da ética e do amor pode ser um princípio norteador do modo de convivência do sujeito consigo mesmo e com as outras pessoas, para que vivam a vida boa. Nesse sentido, uma das questões que deve nos interessar é refletir sobre o entendimento de como a prática educativa, dentro e fora da escola, pode contribuir para a formação dos sujeitos na perspectiva do bem comum e, consequentemente, para a possibilidade de uma vida feliz.

A questão da felicidade aparece no livro Ética a Nicômaco, de Aristóteles, como o bem maior a ser buscado por todo ser humano. Aristóteles afirma que, de modo geral, para os indivíduos em suas ações e seus “propósitos é ele [o bem maior] a finalidade; pois é tendo-o em vista que os homens realizam o resto. Por conseguinte, se existe uma finalidade para tudo que fazemos, essa será o bem realizável mediante a ação; e, se há mais de uma, serão os bens realizáveis através dela” (1991, p. 11, 12).

Ao desenvolver sua compreensão de bem, Aristóteles reconhece várias formas de bem e afirma que se existem vários fins e que os indivíduos escolhem alguns dentre os demais, “segue-se que nem todos os fins são absolutos; mas o sumo bem é claramente algo de absoluto. Portanto, se só existe um fim absoluto, será o que estamos procurando; e, se existe mais de um, o mais absoluto de todos será o que buscamos” (idem, p. 12). O mais absoluto significa dizer daquilo que é buscado por seu valor em si mesmo e não por aquilo que tem seu valor em relação ao interesse em outra coisa. Dessa forma, pode-se entender a relação direta que existe entre o bem absoluto e a felicidade. Em outras palavras, o bem absoluto é a própria felicidade.

Ora, esse é o conceito que preeminentemente fazemos da felicidade. É ela procurada sempre por si mesma e nunca com vistas em outra coisa, ao passo que à honra, ao prazer, à razão e a todas as virtudes nós de fato escolhemos por si mesmos (pois, ainda que nada resultasse daí, continuaríamos a escolher cada um deles); mas também os escolhemos no interesse da felicidade, pensando que a posse deles nos tornará felizes. A felicidade, todavia, ninguém a escolhe tendo em vista algum destes, nem, em geral, qualquer coisa que não seja ela própria. (ARISTÓTELES, 1991, p. 12). Tentando explicar melhor, se buscamos a honra, a saúde, o prazer, ou algo que nos faça bem, é sempre em busca da felicidade. Qualquer coisa que pensemos nesse sentido é sempre tendo em vista a felicidade, mas quando dizemos que buscamos a felicidade é porque desejamos a própria felicidade. Ela é a única coisa que encerra em si mesma a sua finalidade. Por isso é o bem sumo; o bem absoluto.

Para Aristóteles, as virtudes não são adquiridas naturalmente, mas pelo hábito, pelo exercício. “Sendo, pois, de duas espécies a virtude, intelectual e moral, a primeira, por via de regra, gera-se e cresce graças ao ensino — por isso requer experiência e tempo; enquanto a virtude moral é adquirida em resultado do hábito” (1991, p. 27). Nessa perspectiva, a felicidade, enquanto virtude buscada pelo indivíduo, deve ser entendida como uma prática  a ser ensinada e, nesse sentido, a ação pedagógica tem um papel determinante no processo de ensinamento para a aquisição desse bem maior, como possibilidade de que possamos vivenciar a condição de uma vida feliz.

A existência humana, ao longo da história, foi preenchida pelo sentido e pela busca da felicidade, por essa razão, a humanidade sempre teve como desejo a conquista de uma vida feliz. Desde os antigos, a questão da felicidade passa a ter uma importância central na intenção do viver bem. Porém, a base de felicidade para os antigos está apoiada em morais cosmológicas ou divinas, enquanto nas sociedades modernas e democráticas o sentido de felicidade está apoiado em morais laicas e humanistas. E isso muda largamente o entendimento, os interesses e o modo de busca pela felicidade.

Nesse sentido, a partir do momento em que o modelo capitalista de sociedade foi se afirmando, foi também se constituindo, com maior ênfase, a ideia de que é pelo trabalho que se faz o caminho determinante para aquisição do bem maior que garanta a felicidade humana. É aqui que toma corpo o valor utilitarista de felicidade, pois a felicidade agora ganha um sentido de bem-estar que se expressa pela satisfação dos interesses da cada pessoa. Por isso, a sociedade de desempenho induz sempre a um esforço máximo de labuta e de produção que possibilite o alcance da vida boa, mesmo que depois a recompensa por esse esforço titânico gere um processo de esgotamento e adoecimento dos sujeitos.

No entanto, ao longo da história, nem sempre foi assim. Para o pensamento antigo, principalmente para a sociedade aristocrática que predominava no mundo grego, por exemplo, o trabalho sempre foi tido como uma forma de renunciar a felicidade. Não à toa, a sociedade grega era marcada por uma grande quantidade de escravos ou servos, que garantiam a realização de todo trabalho necessário e, dessa forma, liberava os aristocratas de qualquer trabalho para que pudessem viver a vida boa. O filósofo francês Luc Ferry esclarece que no “universo grego, aristocrático por excelência, somente os escravos estavam destinados a essa desgraça que é a obrigação de trabalhar” (2018, p. 21). Em outras palavras, o trabalho implicava em perder a vida, renunciar a felicidade, enquanto o não trabalho, ao contrário, era a forma de ter garantido o bem viver, ganhar a vida (FERRY, 2018).

Essa condição de tortura advinda do trabalho – aliás a palavra trabalho tem origem no vocábulo latino “Tripallium”, que faz referência ao instrumento de tortura formado por três paus (tri + pallium), então “trabalhar” significava ser torturado no tripallium – marcou as sociedades antigas e fez com que o trabalho fosse sinônimo de anulação do bem-estar e da felicidade. Contudo, essa concepção passa a ser confrontada e substituída pela perspectiva católico-republicana, que reconhece no trabalho o caráter meritório e, dessa forma, transforma o aspecto penoso do trabalho em virtude (FERRY, 2018). Esse princípio meritório justifica o sentido de desempenho imposto pelo modelo neoliberal vigente. Nessa lógica, é preciso trabalhar para ser feliz.

Por fim, resta dizer que não devemos entender a felicidade como algo que vamos adquirir apenas pela reflexão que se deve fazer sobre si mesmo (mas esse é um tema para outro artigo). Apreender o verdadeiro sentido da felicidade em nossas vidas é algo de grande monta, pois é muito mais acessível ao nosso entendimento saber o que nos torna infelizes do que aquilo que enxergamos como felicidade. Seguindo o entendimento de Ferry (2018), pelo caráter flutuante e contraditório de nossos desejos, torna-se impossível definir a felicidade de modo categórico e satisfatório. Portanto, vale nos perguntar, até quando vamos continuar buscando no trabalho a afirmação de uma felicidade que nos garanta uma vida boa, mesmo que isso custe a cada um de nós um acúmulo insuportável de estresse e de adoecimentos da alma e do corpo? Será que estamos apenas adquirindo aparências de felicidades nessa busca que nos consome por uma vida feliz? Ou será que ainda não entendemos que a felicidade pode estar por entre os caminhos que cruzam alegrias e tristezas?

*Nelino Azevedo de Mendonça é professor, mestre em Educação e membro da Academia Cabense de Letras. Escreve às quartas-feiras.

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