Cultura

A luta quilombola pela preservação de práticas agrícolas tradicionais no Brasil

ONU News com FAO Brasil

Em 23.01.2025

Comunidade do Cerrado mineiro preserva tradições reconhecidas pela ONU como único Patrimônio Agrícola Mundial do país; coleta de flores sempre-vivas ajuda combate à pobreza; mas cultura do eucalipto ameaça tradição.

Andréia Ferreira dos Santos é apanhadora de flores. Criada pela avó no Quilombo Raiz, ela cresceu colhendo as “sempre-vivas”, que são mais de 300 espécies de plantas do Cerrado em Minas Gerais. Elas servem para compor buquês ornamentais de longa duração.

Após colhidas e secas, essas flores são fundamentais para comunidades tradicionais da região. Por isso, foram reconhecidas pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, FAO, como o primeiro Sistema Importante do Patrimônio Agrícola Mundial brasileiro.

Principal fonte de renda da comunidade

Andréia é parte da quinta geração do quilombo, que foi fundado pela sua trisavó. Ela conta que sua identidade é incrustada na Serra do Espinhaço, em Minas Gerais. Ali, ele e outros 100 quilombolas cultivam a “roça de toco” (sistema de cultivo com rodízio de culturas) e criam animais nos quintais.

A principal fonte de renda da comunidade, contudo, advém da coleta das flores. De acordo com ela, em cada safra, que varia conforme a espécie, uma pessoa consegue apanhar até uma tonelada de flores, vendidas entre R$ 25 e R$ 70 reais, o quilo.

Mas a realidade mudou a partir dos anos 2000, com o processo de modernização agrícola no país. O cultivo de eucalipto chegou à região, gradualmente substituindo as florestas, e as flores, pela monocultura.

Artesanatos e capim-dourado

Os quilombolas foram perdendo acesso ao território à medida em que o espaço para a colheita era reduzido entre as novas fazendas.

A comunidade partiu então para o desenvolvimento de artesanatos. Andréia Ferreira dos Santos conta que “o impacto cultural e econômico foi muito grande. Uma forma de continuar o nosso modo de vida foi agregar valor”.

Foi assim que, desde 2006, o trabalho manual de capim-dourado do Quilombo Raiz chegou a feiras em todo o Brasil, e até em outros países, na forma de pulseiras, brincos, luminárias e diversos objetos.

Preocupada com a juventude

Isso não significa que a atividade tradicional foi abandonada. “A coleta de flores continua sendo importante e é passada de geração à geração, mesmo espremidos no território e sem acesso aos campos de coleta tradicionais”, ressalta a líder, que se inquieta em relação ao futuro.

“Eu fico um pouco preocupada com a juventude. Se a gente não consegue colher de forma positiva, que mantenha os jovens dentro do território, com suas próprias rendas, é uma dificuldade. O território é muito importante para que continue a cultura e os modos de vida tradicionais”, destaca.

Com o objetivo de articular a defesa dos direitos da comunidade, a mestre em estudos rurais entrou para os movimentos sociais em 2014. Ela integrou a Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas. “Dentro da comunidade, outros jovens e eu somos lideranças. Foi onde eu me encontrei nesse processo. Somos muito ativos em buscar acesso a políticas públicas”, explica.

Primeiro Patrimônio Agrícola Mundial do Brasil

A partir dessa mobilização, em 2015, a comunidade recebeu oficialmente do governo brasileiro o título de quilombo e, em 2018, a consagração como apanhadores de flores sempre-vivas. Dois anos depois, chegou o título de Patrimônio Agrícola.

Além do valor simbólico, os reconhecimentos conquistados têm o potencial de gerar resultados concretos. Segundo ela, a articulação nacional e internacional deu visibilidade à comunidade, o que contribuiu para barrar a entrada da mineração na região, evitando a contaminação da água nos campos de colheita.

“O reconhecimento da ONU foi bem importante e impactante. A comunidade entende que é muito mais importante ter água do que ter dinheiro. Nós já vivemos do que temos até hoje e queremos continuar assim”.

Ação das mulheres e geração de renda

A organização da comunidade também possibilitou que o Quilombo Raiz se tornasse um fornecedor do Programa Nacional de Alimentação Escolar e começasse o processo para integrar o Programa de Aquisição de Alimentos, duas iniciativas de compras públicas oriundas da agricultura familiar.

Para a coletora de flores, o acesso às políticas públicas é fundamental para manter o território: “não basta pensar na cultura, a gente tem que pensar na geração de renda também”.

Com muitas conquistas até aqui, a comunidade segue mobilizada para garantir seus direitos, com destaque para a ação das mulheres. E lideranças como ela são a maioria: “é uma rede de mulheres trabalhando para a comunidade se manter. São elas que estão mais presentes nos quintais e na luta. A associação é composta só por mulheres. Elas estão em todos os contextos”.

O que são os Sipams?

O Programa de Sistemas Importantes do C, Sipam, lançado pela FAO em 2002, é uma iniciativa do Escritório de Mudanças Climáticas, Biodiversidade e Meio Ambiente. Ele reconhece e apoia sistemas agrícolas tradicionais que combinam conservação da biodiversidade, patrimônio cultural, ecossistemas resilientes e meios de subsistência sustentáveis. Com 89 sistemas em 28 países, o Sipam exemplifica o compromisso da FAO em transformar os sistemas agroalimentares, integrando o conhecimento tradicional com práticas inovadoras para enfrentar desafios globais como as mudanças climáticas, a perda de biodiversidade e a pobreza rural.

Imagem destaque: Luiza Olmedo/FAO Brasil – Os quilombolas estavam perdendo acesso ao seu território à medida em que o espaço para colheita foi reduzido

 

One thought on “A luta quilombola pela preservação de práticas agrícolas tradicionais no Brasil

  1. É através de lutas e união das comunidades que continuam vivas as tradições. Temos muitos exemplos no Brasil a fora.

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